O ex-presidente Lula enviou uma carta aos participantes do encontro ÈGBÉ – Eu e o Outro – I Encontro Nacional de Povos de Terreiros, que aconteceu, nos dias 13 e 16 de julho, em Belo Horizonte (MG). O evento contou com lideranças de terreiros de todo o Brasil e foi construído em parceira com diversos movimentos sociais entre eles MST, MNU, ACBANTU, CENARAB e outros.

Para os organizadores, a atual conjuntura do país exige uma maior articulação dos povos de terreiro na defesa dos territórios como espaço de resistência,  estreitando assim os laços com os movimentos, no esforço de retorno às ancestralidades, e fortalecendo a luta, a organização e a resistência. Leia as palavras do ex-presidente:

Queridas companheiras, companheiros, irmãos e irmãs que participam deste Egbé (gostei desta palavra que não vou esquecer, eu e o outro… eu me abrindo para o outro!).

Quero, em primeiro lugar, falar pra vocês da minha alegria quando soube, através de um recado da Makota Celinha que me chegou aqui em Curitiba, que vocês estavam organizando este encontro, este Egbé, e no dizer dela o primeiro encontro dos “Macumbeiros” de esquerda do Brasil e com participação de militantes de outros países.

Logo me veio à cabeça a lembrança dos primeiros encontros que nós realizamos, no final da ditadura, na década de setenta, que reuniam militantes do novo sindicalismo, dos movimentos sociais e Igrejas, e que foram fundamentais para a criação da CUT, do MST, e do próprio PT… 

Então, parabéns a todos vocês por este Primeiro Egbé, por este primeiro passo que já é por si mesmo uma tremenda vitória. E outras virão. 

Outra imagem que me veio na cabeça, ao saber deste encontro, foi quando estive no Senegal e fui visitar no dia 14 de abril de 2005 o porto de onde partiram os maiores contingentes de irmãos africanos para o nosso Brasil. Visitar, atravessar a porta da ilha de Gore, a chamada porta do “Nunca Mais”, foi uma emoção fortíssima para mim naquele momento e ainda hoje. Fiquei imaginando a dor e o desespero daquelas pessoas que viviam sua liberdade em sua terra natal e foram aprisionadas, arrastadas, condenadas a partir para uma terra desconhecida, e aqui vendidas como mercadoria, obrigadas ao regime de escravidão, de trabalho forçado, de tortura e humilhações permanentes… Pensei nas famílias desfeitas, nos sonhos destruídos e nas mortes durante as viagens. 

Infelizmente, companheiras e companheiros, como vocês sabem melhor do que eu, porque experimentam em sua própria pele, a Escravidão, além de bárbara e desumana, que marcou para sempre a sociedade brasileira dura até hoje em suas consequências profundas na cultura, no regime econômico, nas relações da sociedade brasileira. Ela revive em cada menino pego numa blitz vítima de um brutal esculacho pela simples cor da sua pele, ela se atualiza em cada pessoa negra vítima das balas da violência policial. Ela volta e cada ataque a terreiro ou casas de Santo pelo preconceito religioso e racial, ela continua em cada companheira e companheiro que sofre o preconceito e a discriminação, seja em suas formas mais explicitas ou mais disfarçadas. Em cada situação assim nossos irmãos voltam a passar por sua porta de Gorê. 

Mas vocês são fortes e resistem! O povo negro em sua incrível e maravilhosa criatividade sempre encontrou formas de enfrentar o opressor, seja na luta dos quilombos, seja na resistência diária, seja em incríveis formas culturais e religiosas, driblando de forma incrível, não sem grande sofrimento, os opressores. 

O povo negro hoje honra seus antepassados, lavam a alma dos que tanto sofreram e sofrem, através desta luta que vocês enfrentam. Cada passo, cada conquista por menor que seja, é uma vitória imensa sobre esse passado, e uma vitória daqueles que foram injustamente vencidos pela escravidão, pela opressão que perdura. 

Temos muito, muitíssimo a avançar, companheiros e companheiras! Mas o fato de termos conseguido a inclusão a econômica e social de milhões de brasileiros em sua imensa maioria negros, a conquista das quotas, a criação do Ministério da Igualdade 

Racial, o fortalecimento que vocês conquistaram de tantas organizações que lutam pela igualdade racial são os passos importantes que deverão ser seguidos por muitos outros. Falta muita a conquistar. Muito! 

E veja vocês, não é à toa que as elites e o atual desgoverno atacam duramente essas conquistas. Não é à toa que acabaram com nosso Ministério da Igualdade Racial, que atacam e tentam desmoralizar as quotas e as universidades, que destroem com rara crueldade toda a rede de proteção social que construímos com os pobres, com os negros, e para estes eles oferecem apenas as balas de suas armas criminosas que executam este genocídio bárbaro sofrido pelos filhos do nosso povo negro. 

Sinto muito, mas vocês que tanto lutaram vão ter ainda muita luta pela frente. Vejo por isso com muita alegria o surgimento desta articulação de militantes progressistas dos povos de terreiro e das diversas vertentes das religiões tradicionais dos nossos povos africanos. A fé é um elemento essencial para nosso povo, para quem luta, a imigração dos povos africanos enriqueceu nosso povo com estas tradições religiosas maravilhosas. Unir a fé e a luta social e política é essencial neste momento para ampliarmos nossos horizontes de luta. 

Por favor, minhas queridas companheiras e companheiros, vençam as diferenças, as dificuldades, não permitam que disputas menores impeçam esta grande articulação de militantes progressistas ligados à fé. Vocês têm uma enorme responsabilidade neste momento em que os pobres, negros na sua imensa maioria, voltaram a sofrer tanto, neste momento em que as pessoas começam a perder justamente a fé na vida, na luta. Sejam fermento no meio da massa. A energia e a mística de vocês são necessárias e fundamentais para que a gente retome com nosso povo a construção de um projeto de vida e de esperança. 

Como vocês dizem: Um AXÉ do fundo do meu coração a cada um e a cada uma. Com um abraço especial à Makota Celinha, eu abraço a cada um e uma de vocês. E não esqueçam de mandar uma boa energia, uma reza forte para este irmão de vocês que segue resistindo, apesar de tudo, porque eu amo muito meu povo, amo muito vocês!