A maneira como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ainda sonolento, soube de sua primeira prisão é um dos relatos presentes no livro do jornalista Fernando Morais “Lula, volume 1: Biografia”. A obra, editada pela Companhia das Letras, estará à venda a partir de 16 de novembro, com preço sugerido de R$ 74,90.

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Segundo a editora, o livro é resultado de dez anos de trabalho do escritor, e recupera momentos determinantes na trajetória do político, além de apresentar fatos que trazem novas informações sobre momentos históricos.

Um deles é sobre a criação do PT, que não surgiu em um colégio em um bairro nobre de São Paulo em 1980, e sim em um encontro com trabalhadores em um hotel na mineira Poços de Caldas em junho de 1979.

Para o colunista do UOL Chico Alves, “um dos muitos atrativos da biografia é acompanhar a gradativa transformação do líder sindical em um dos principais nomes da política brasileira”.

Leia dois trechos do livro sobre Lula:

“Embora portassem um pequeno arsenal nas mãos, os homens estavam visivelmente nervosos, olhando para os lados, como se temessem algum enfrentamento com grupos de metalúrgicos que zanzavam entre as portas das fábricas, convocando para a assembleia que aconteceria dali a pouco. O de bigodes respondeu rispidamente:

— Viemos prender o sr. Luiz Inácio da Silva.

Geraldinho fez uma inesperada, insólita pergunta:

— O senhor tem mandado judicial para prendê-lo?

Não deixava de ser uma irônica ousadia exigir determinações da Justiça para prender alguém em plena ditadura, mas em silêncio o homem enfiou a mão no bolso interno do casaco de couro, tirou um pedaço de papel datilografado, mal o desdobrou e guardou-o de volta, sem tempo para que o deputado conseguisse ler uma só sílaba do que estava escrito ali. Podia ser uma ordem da Justiça e podia não ser nada. Tratava-se, na verdade, de um mero impresso policial preenchido às pressas e assinado apenas por alguém denominado “escrivão Nilton”, porém as circunstâncias não recomendavam discussões jurídicas. Sobretudo porque a paciência do interlocutor parecia curta:

— Se ele não se entregar imediatamente, vamos entrar e prendê-lo.

Geraldinho tranquilizou-o, disse que ia acordar Lula e que em poucos minutos ele estaria pronto para ser preso. Correu para os fundos, despertou Frei Betto com a notícia de que a polícia estava na porta e pediu a ele que acordasse Lula. Enquanto isso, pegou o telefone da sala e discou o número do apartamento da jovem cientista social e líder estudantil Beatriz Tibiriçá, a “Beá”, sua assistente no gabinete parlamentar, e cumpriu, com cinco palavras, a tarefa para a qual vinha se preparando fazia vários dias:

— Lula está sendo preso agora.

De calças jeans e camisa listrada, de mangas curtas, Betto bateu suavemente na porta do quarto do casal e percebeu que marido e mulher dormiam pesado. Entrou e cutucou Lula pelo ombro:

— Levanta, os homens estão aí para te prender!

Para espanto do religioso, Lula virou-se para o outro lado da cama e praguejou:

— Eles que se fodam! Eu estou dormindo, porra!

Preocupado, Betto insistiu:

— Lula, os caras estão aí! Estão gritando que vão entrar e te prender!

Ele acabou se levantando. De pés no chão e sem camisa, saiu para a rua abotoando a braguilha. Sem aparentar medo, mas bastante mal-humorado, travou com o suposto chefe do grupo um diálogo tenso:

— O que que é? O que é que o senhor quer?

— Você está preso!

— Preso por quê?

— Nós também não sabemos. Só mandaram te prender.

— Então vocês esperem um pouco, porque eu vou escovar os dentes, me vestir e tomar um café.

Reapareceu logo, com Marisa, Betto e Geraldinho. Foi colocado no banco de trás da perua, guardado por seis homens: um de cada lado dele, dois na frente e mais dois acocorados no compartimento de bagagens, todos armados. Assim como estavam armados mais quatro civis campanados em outra Veraneio, parada a poucos metros da casa. Em alta velocidade, as duas viaturas pegaram o rumo de São Paulo.

O mesmo Lula que minutos antes falara grosso com os tiras agora estava com muito medo. Não havia nenhuma garantia de que aqueles homens fossem de fato da polícia ou de outro órgão de segurança do governo. As torturas a que seu irmão, Frei Chico, fora submetido pelo DOI-Codi, cinco anos antes, não saíam da sua cabeça. Quase quarenta anos depois, já ex-presidente da República, ele ainda se lembraria do pesadelo que viveu ao ser posto no veículo clandestino:

— Começou a dar medo na hora que entrei na perua. Era eu sozinho com seis caras armados. Comecei a lembrar de gente que tinha sido assassinada e que tinham desaparecido com o corpo. Porra, ali não tinha testemunhas? Para onde aqueles caras estavam me levando? E se eles me matassem, passassem o carro por cima de mim e dissessem que eu fui atropelado?

Por sorte os macabros vaticínios duraram pouco. Minutos depois, quando passavam em frente ao restaurante Leão de Ouro, a um quilômetro da casa de Lula, o silêncio foi interrompido pelo som do rádio do veículo, ligado pelo homem que conduzia a Veraneio. O aparelho estava sintonizado em O Pulo do Gato, popular programa matutino de noticiário e variedades da Rádio Bandeirantes, dirigido pelo jornalista José Paulo de Andrade. E foi o próprio diretor quem interrompeu a programação e entrou no ar:

— Atenção, muita atenção! O sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula, acaba de ser preso em São Bernardo. A informação foi transmitida por uma fonte segura, a Cúria Metropolitana de São Paulo.”

*

“A 10 mil quilômetros de distância da Europa e quase mil de Brasília, trecho por onde o incansável Leonel Brizola transitava na luta pela reimplantação de seu partido trabalhista, Lula se reunia na plácida Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, para assentar o primeiro tijolo de sua sonhada catedral política, o Partido dos Trabalhadores.

Com certidão de nascimento lavrada apenas em 11 de fevereiro de 1982, quando o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu oficialmente sua existência, o PT foi apresentado ao mundo como se tivesse nascido no auditório do Colégio Sion, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, no dia 10 de fevereiro de 1980, na célebre foto em que aparecem, entre outros, ao lado de Lula, os intelectuais Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa, Antonio Candido, a atriz Lélia Abramo e o revolucionário Apolônio de Carvalho.

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Mas havia só trabalhadores quando o partido veio à luz, de verdade, no dia 7 de junho de 1979, nos imponentes salões neoclássicos do Hotel Palace Casino, inaugurado na estação de águas mineira em meados dos anos 1930. Nos sete meses que separam Poços de Caldas da cerimônia do Colégio Sion, entretanto, os mais brilhantes astros da esquerda brasileira se engalfinharam como fazia muito tempo não se via.

Sem que quase ninguém soubesse, até chegar a Poços de Caldas Lula e seus companheiros do ABC tinham ruminado durante meses seguidos a ideia de criação de um partido político de raízes verdadeiramente operárias. Primeiro foi o espanto pela ausência quase absoluta de trabalhadores entre os congressistas, constatação feita naquela viagem a Brasília, onde fora discutir a abertura política com o líder do governo militar, senador Petrônio Portela.

A consciência de que havia apenas dois operários entre quase quinhentos senadores e deputados federais deixara Lula com a pulga atrás da orelha —e passou a ser tema obrigatório de todos os debates, encontros e congressos de que ele participava. Onde quer que fosse convidado para falar de questões salariais, de inflação, de desemprego, ele dava voltas, fazia circunlóquios e rodeios até que finalmente batia no alvo: boa parte da responsabilidade pela penúria vivida pelos brasileiros pobres residia na representação quase nula deles, os trabalhadores, nas Casas que faziam as leis que regiam tudo no país.

A metamorfose do Lula “detesto política e quem gosta de política”, que começara a se tornar pública no tal congresso dos petroleiros de meados de 1978, na Bahia, reaparece em janeiro de 1979 na cidade de Lins, no interior paulista, durante o IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos, Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo.

No domingo à noite, quando Lula finalmente deu por encerrada a reunião do Pampas Palace Hotel, chegava também ao fim a longa e tortuosa gestação do PT. O sindicalista deixou para trás os políticos, artistas e ativistas em São Bernardo do Campo e enfrentou trezentos quilômetros de estrada rumo a Minas Gerais, para realizar, num encontro só de trabalhadores, em Poços de Caldas, o trabalho de parto do PT. Só no dia 10 de fevereiro de 1980, no auditório do Colégio Sion, em São Paulo, o PT seria formalmente apresentado aos brasileiros.

Como se estivesse com um olho no gato e outro no peixe, ao mesmo tempo que montava o partido, Lula preparava uma nova greve no ABC. Desde os primeiros dias do ano ele era vigiado à distância por agentes da repressão. Na madrugada de 19 de abril, no auge da greve, seria abruptamente despertado em casa e trancafiado no Dops junto com seus companheiros de diretoria do sindicato.”

Da Coluna do Chico Alves, no UOL.