Neste mês a aprovação da União Civil para casais homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) completou 10 anos. O mês de maio e, especificamente esta segunda-feira, 17, é o Dia Internacional da Luta contra a LGBTfobia. Essa data foi escolhida para ser lembrada como um dia de luta, pois, foi em 17 de maio de 1990 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a homossexualidade como um distúrbio mental ou doença.

Da decisão do STF para os dias de hoje, se passaram 10 anos. O Brasil passou por imensas transformações e quando recortamos para a questão dos direitos e luta política da comunidade LGBT, essa transformação se apresenta de maneira paradoxal: na esfera da política institucional a última década é marcada por retrocessos e avanços de grupos fundamentalistas que atuam cotidianamente contra qualquer avanço legislativo em prol das LGBT. Mas, ao mesmo tempo o movimento LGBT tem conquistado importantes vitórias em várias esferas: nas artes, nas comunicações e, principalmente, na eleição de parlamentares às Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais e, em menor escala, no Congresso Nacional.

É a partir desse contexto que as pesquisadoras Regina Facchini e Isadora Lins França, ambas vinculadas ao Núcleo Pagu de Estudos de Gênero, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), lançam o livro “Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo” (Editora Unicamp). Segundo as autoras, “O livro oferece um abrangente panorama, desenhado pelo conjunto dos artigos, percorrendo temas fundamentais para discussão sobre direitos na nossa sociedade: interseccionalidades em relação a classe, raça, gênero e geração, a pluralidade das formas de atuação dos movimentos sociais, produção científica, políticas públicas de saúde, de educação e impactos do conservadorismo”.

Facchini e Lins, que além de pesquisadoras referências nos estudos sobre gênero e sexualidade, são também parte dessa história retratada no livro que lançam. Dessa maneira, também conversamos sobre os últimos 10 anos de movimento LGBT e qual será o papel deste nas eleições do ano que vem, pois, o atual presidente já tem dado sinais de que vai apostar na agenda movida pelo discurso de ódio às LGBT para rivalizar com os seus opositores, principalmente com o candidato do Partido dos Trabalhadores.

“A categoria acusatória “ideologia de gênero” têm indicado, sua criação e mobilização é um fenômeno transnacional de grande alcance, que, embora tenha coexistido ao longo de boa parte do processo de cidadanização de mulheres e LGBTI+ nos últimos 25 anos, ganhou maior difusão na última década. Seu uso tem estado ligado a processos de disputa política pela extrema direita em diferentes continentes, em boa parte dos casos agregada a projetos ultraliberais que varrem do mapa direitos sociais e direitos de “minorias”’, analisam as autoras.

A seguir, você confere a entrevista na íntegra.

Revista Fórum – Gostaria que vocês falassem um pouco sobre o conteúdo do livro Direitos em Disputa e qual a importância de uma publicação com tal conteúdo para o atual contexto político?

Regina Facchini e Isadora Lins França – O livro reúne 32 autoras e autores de diferentes regiões do país em 20 capítulos, oferecendo uma leitura dinâmica e acessível sobre as disputas em torno dos direitos para LGBTI+ no Brasil. Os textos são todos inéditos, produzidos num contexto em que o debate sobre gênero e sexualidade tem ganhado centralidade na cena pública e na vida política do Brasil. Esse é um processo que ocorre pelo menos desde os anos 2000, mas que é hoje marcado pela ascensão do reacionarismo de extrema direita no País, o que nos levou a um contexto de extrema insegurança do ponto de vista dos direitos da população LGBTI+. Nesse contexto preocupante, as autoras e autores do livro esforçaram-se para produzir uma reflexão original, alguns com pesquisas diretamente voltadas à situação mais imediata e outros revendo pesquisas de referência, produzidas no período de ampliação de políticas para LGBTI+ no Brasil, à luz do momento que vivemos.

O livro “Direitos em Disputa” apresenta uma contribuição importante para a compreensão das transformações intensas que temos vivido nas duas últimas décadas, que se singularizam também pela velocidade com que mudam os cenários políticos. Gênero e sexualidade têm assumido um lugar central no nosso debate político, e os artigos do livro encaram o desafio de uma análise dessas disputas com base no conhecimento científico consolidado sobre o tema nos últimos anos no Brasil.

O livro oferece um abrangente panorama, desenhado pelo conjunto dos artigos, percorrendo temas fundamentais para discussão sobre direitos na nossa sociedade: interseccionalidades em relação a classe, raça, gênero e geração, a pluralidade das formas de atuação dos movimentos sociais, produção científica, políticas públicas de saúde, de educação e impactos do conservadorismo. Além disso, contamos com autoras e autores de diferentes instituições, de distintas gerações, de diferentes inserções disciplinares e que têm uma produção reconhecida na área dos estudos de gênero e sexualidade. Por tudo isso, representa uma contribuição fundamental para compreender o contexto que enfrentamos hoje no Brasil.

Além de terem um lugar central na política contemporânea, é importante lembrar que, para além de suposta particularidade, gênero e sexualidade são o lugar a partir do qual um conjunto muito diverso de intelectuais se debruça sobre questões cruciais dos processos políticos nacionais e transnacionais que implicam a disputa acerca de quem deve viver ou quem deve morrer em nosso país e em outros que são atingidos pelo crescimento do reacionarismo dirigido aos direitos humanos e à proteção social. LGBTI+ são o ponto de partida dessas contribuições, esperamos que possam se somar a análises sobre os processos políticos contemporâneos produzidos por meio de outros pontos de partida empíricos.

Revista Fórum – Neste mês a aprovação da União Civil pelo STF completou 10 anos. Como vocês avaliam a questão dos direitos LGBT nesta década?

Regina Facchini e Isadora Lins França – A decisão representou conquista histórica do movimento LGBTI+ e ocorreu no contexto de outras decisões igualmente importantes. Foi uma decisão unânime dos ministros do Supremo Tribunal Federal que reconheceu as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo e possibilitou, com a posterior regulamentação do Conselho Nacional de Justiça, o casamento. Nos últimos 10 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro também reconheceu a possibilidade de alteração de nome e sexo em registros civis independente de processo judicial ou procedimentos cirúrgicos (2018), além de ter reafirmado a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe terapias de reversão da homossexualidade, a chamada ”cura gay” (2020). Esses e outros avanços foram resultado de um processo de ”cidadanização” que remonta ao período de democracia recente no país, intensificando-se durante os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Também representaram uma estratégia dos movimentos sociais em garantir direitos via poder jurídico, já que o congresso brasileiro mostrava-se pouco permeável a demandas para a população LGBTI+. Atualmente, há intensa disputa sobre a atuação do STF na garantia de direitos, questionada por um executivo e legislativo reacionários, a começar pelo presidente atual Jair Bolsonaro.

Assim, ao mesmo tempo em que houve conquistas, observamos um cenário bastante hostil aos direitos LGBTI+. As conquistas obtidas nesse período foram fruto de muita mobilização do movimento LGBTI+ e, embora muito importantes, mostram-se em certa medida ainda frágeis, particularmente quando presenciamos os ataques e ameaças à própria democracia. Isso tudo convive com discursos de ódio em relação a LGBTI+ e outras populações entendidas como minorias no nosso país, o que configura como um verdadeiro incentivo à violência crescente contra essas populações. Para além do desmonte das políticas relacionadas a gênero e a sexualidade anteriormente existentes, temos a ascensão de políticas antigênero e de defesa de noções estreitas e abstratas de família, mulher, criança, por exemplo. Trata-se de um cenário difícil, em que é fundamental a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e das políticas voltadas para o enfrentamento da violência contra LGBTI+.

Revista Fórum – Levando em conta que nas eleições 2018 a questão da inclusão sobre discussões de gênero e LGBT nas escolas foi utilizado pela extrema direita de maneira negativa e, ao que tudo indica, deve novamente ser utilizado de maneira a atacar o candidato da oposição. Como vocês imaginam o papel do movimento LGBT na próxima disputa nacional?

Regina Facchini e Isadora Lins França – Infelizmente, trata-se de algo com maior densidade do que o uso pontual de um factóide político em um dado cenário eleitoral. Como as pesquisas que se debruçaram sobre a categoria acusatória “ideologia de gênero” têm indicado, sua criação e mobilização é um fenômeno transnacional de grande alcance, que, embora tenha coexistido ao longo de boa parte do processo de cidadanização de mulheres e LGBTI+ nos últimos 25 anos, ganhou maior difusão na última década. Seu uso tem estado ligado a processos de disputa política pela extrema direita em diferentes continentes, em boa parte dos casos agregada a projetos ultraliberais que varrem do mapa direitos sociais e direitos de “minorias”.

No Brasil, além de ter sido utilizada para mobilizar pânicos morais que favoreceram a eleição do atual presidente, ela tem ajudado a estabelecer um recorte da realidade que colabora para a mobilização de eleitores e apoiadores do projeto político associado ao atual governo. O combate à “ideologia de gênero” é uma das peças centrais na compreensão do que demandaria a atuação de atores políticos que atualmente se identificam como “conservadores” ou “de direita”.

O movimento LGBTI+, por sua vez, está mais pluralizado do que nunca, então é difícil falar no movimento LGBTI+ como se fosse único. O que é necessário é pensar em possíveis articulações entre as várias frentes pro-LGBTI+ e entre sujeitos políticos que se veem igualmente atacados e ameaçados pelas forças reacionárias e também pensar na atuação do movimento a partir de suas mais diversas frentes.

É preciso que os atores ativistas mais afeitos à atuação institucional, especialmente aqueles que produziram um diálogo mais denso no interior de estruturas partidárias ao longo do tempo, aproximem-se da disputa eleitoral e que haja diálogo com os partidos e candidatos, de forma a explicitar o lugar que a mobilização de categorias como “ideologia de gênero” e as políticas antigênero e direitos sexuais jogam na mobilização do projeto político ao qual se opõem. Talvez seja importante alertar para o fato de que o reacionarismo tem operado uma disputa da noção de direitos que, ao mesmo tempo em que se apoia no anti-intelectualismo e no desprezo por bases empíricas e científicas para orientar a ação política, elege como sujeitos de direitos categorias abstratas – como “a mulher”, “a criança”, “a família”, “o nascituro” -, esvaziadas de qualquer vínculo com a pluralidade que marca as famílias, as mulheres e as crianças de carne e osso. O antídoto a isso parece estar longe de tomar tais questões como “cortinas de fumaça” ou “identitarismo”. Ao contrário, parece muito importante se aproximar da diversidade das experiências concretas das diversas famílias, mulheres, homens, crianças, sobretudo neste momento em que a dolorosa realidade da pandemia e seus efeitos sobre as famílias enlutadas e empobrecidas vem tendo pouca visibilidade e acolhimento por parte do governo federal.

Ainda, é importante que os ativistas que estão mais próximos de uma atuação menos institucionalizada possam atuar na provocação de reflexões acerca da importância da participação política eleitoral. Que o movimento siga propondo, apoiando e acompanhando candidaturas LGBTI+, mas também pautando de modo mais central a necessidade de combate à violência política contra candidatas/os/es e políticos eleitos/as/es.

Revista Fórum – Apesar do avanço da agenda reacionária e conservadora, nas eleições municipais tivemos a eleição em todo o Brasil de candidaturas LGBT com forte recorte de classe e raça e a maioria ligada aos partidos de esquerda. Como observam essa movimentação? Acreditam que ela pode se repetir na disputa legislativa de 2022?

Regina Facchini e Isadora Lins França – De fato, candidaturas LGBT e com esse recorte de classe e raça tiveram votações muito expressivas, bem como tiveram sucesso diversas candidaturas coletivas. Isso mostra o acerto de valorizar uma ideia de “luta contra todas as opressões” ou mesmo as candidaturas que são vistas como “interseccionais” – pessoa LGBTI+, negra e popular, por exemplo. Essas candidaturas têm renovado o cenário político no país, são uma novidade muito bem-vinda, inclusive porque ajudam a renovar os partidos e qualificar o debate público. Por outro lado, as pesquisas sobre a participação de mulheres, pessoas negras e LGBTI+ em disputa eleitoral indicam que esses atores políticos têm tido mais sucesso nos pleitos eleitorais municipais, por conta até da força do contexto local e da atuação de base nesses pleitos. Tem sido mais difícil repetir esse tipo de resultado em contextos dos estados e da federação. Outras pesquisas e o cotidiano dos mandatos de pessoas negras e LGBTI+, especialmente trans, têm indicado também o acirramento da violência política, levando a uma situação em que há a vitória eleitoral, mas ameaças à vida e à integridade física e constrangimentos cotidianos procuram impedir a atuação dos mandatos. A força política de afirmar a concretude e a diversidade das pessoas e das opressões que atravessam e modulam suas existências é uma mudança relativamente recente que mostra possibilidades de um reencantamento da política institucional/eleitoral e demonstra também o potencial dos movimentos sociais e candidaturas a eles articulados na transformação mesmo dessa política mais institucional.

Da Revista Fórum.