Lawfare: Como identificar perseguições políticas através do Sistema de Justiça
O que há em comum entre as prisões do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e do militante australiano Julian Assange? Por que Donald Trump (EUA) e Patrick Balkany (França), para se defender de graves acusações, afirmam serem vítimas de “perseguições” promovidas pelas agencias dos Sistemas de Justiça de seus países? Qual a lição que é possível tirar dos processos penais instaurados contra Cristina Kirchner (Argentina), Rafael Correa (Equador), José Sócrates (Portugal), Pablo Iglesias (Espanha) e Jean-Luc Mélenchon (França)? O que explica ataques contra advogados, promotores de justiça, defensores públicos e magistrados que contrariam os interesses dos detentores do poder político e/ou econômico? Em apertada síntese: todos esses casos mencionados deixam claro que o Sistema Judiciário se tornou um importante espaço de luta política.
Independentemente dessas pessoas serem ou não inocentes, a simples existência desses processos e os debates em torno da legitimidade dos respectivos procedimentos revelam que cresceu a consciência de que o direito e as leis podem ser transformados em armas contra os inimigos políticos. A instauração de uma guerra jurídica (lawfare) contra um inimigo, hoje, é uma estratégia cada vez mais frequente.
Diante desse quadro, surge o desafio, para todos aqueles que não se deixaram seduzir por ilegalidades convenientes, de diferenciar os casos de lawfare dos processos legítimos contra políticos acusados de crimes. Para tanto, três questões precisam ser objeto de reflexão: em primeiro lugar, é preciso delimitar o conceito de lawfare. Depois, desvelar a utilização do significante “corrupção” como principal elemento mistificador do discurso que busca justificar a eliminação de adversários políticos. Por fim, compreender a função dos direitos e garantias fundamentais na legitimação, ou não, dos processos judiciais.
Do lawfare
Lawfare, por definição, é a utilização do sistema de justiça como o locus de uma guerra contra pessoas identificadas como “inimigas”, em que as armas são interpretações distorcidas (e potencialmente destrutivas) das leis, institutos, procedimentos e categorias do direito. Com essa expressão, que surge da contração das palavras law e warfare, busca-se designar a instrumentalização do Sistema de Justiça, das leis e procedimentos para fins políticos e ideológicos. No lawfare, por de trás de uma aparência de legalidade e do mito da neutralidade do Poder Judiciário, o Sistema de Justiça passa a ser utilizado para manipular a opinião pública, desgastar e, se necessário, eliminar os inimigos dos detentores do poder político e/ou econômico.
A partir de uma acusação, que exterioriza uma “versão” sem qualquer compromisso com o valor “verdade”, instaura-se um assédio judicial (e, não raro, midiático) que visa destruir reputações a partir de insinuações/imputações consideradas graves nos respectivos contextos. Esse assédio costuma ter por base violações das garantias constitucionais dos acusados, em especial o “vazamento” de informações sigilosas e íntimas, muitas vezes sem qualquer ligação com o “crime” atribuído ao réu. O processo penal, nesses casos, acaba reduzido a uma mercadoria: um espetáculo em que a dimensão de garantia (inerente aos processos democráticos) acaba substituída pela dimensão de entretenimento com a funcionalidade política de destruir o capital simbólico (prestígio social) do adversário político.
O uso do direito contra adversários políticos, aliás, não é novidade. O que há de diferente, na atual quadra histórica, é a total desconsideração dos valores, regras e princípios constitucionais e a correlata explicitação do caráter seletivo, ilegítimo e inquisitorial das ações estatais direcionadas contra os indesejáveis aos olhos dos detentores do poder político. A persecução penal, então, parte das “certezas” (por vezes, delirantes) que os atores jurídicos pretendem compartilhar e introjetar na população.
No lawfare é possível identificar um funcionamento psicótico/paranoico do sistema de justiça. A lei simbólica (a Constituição, os Códigos, etc.) acaba substituída pela imagem que o ator jurídico, transformado em soldado na luta contra o inimigo, faz da lei ou da justiça. Mas, não é só. A verdade é percebida como desnecessária diante de quadros mentais marcados por “certezas”, “convicções” e ideias salvacionistas. O juiz-soldado, não raro, acredita que tem a missão de livrar o mundo dos inimigos, ainda que imaginários.
A corrupção como “significante vazio”
A crise da democracia representativa se faz sentir em todo o mundo, em especial diante da aproximação antidemocrática entre o poder político e o poder econômico. Contudo, no Brasil e na Itália, mais do que em outros países, as agências do Sistema de Justiça exerceram um papel determinante para transformar a crise da representação em uma crise dos próprios valores, princípios e regras democráticos. Muitos atores jurídicos passaram a atuar no sentido de criminalizar a politica, com um discurso de justificação recheado de “boas intenções” e “moralismos”, ao mesmo tempo em que prometiam resolver os problemas gerados pelas distorções da democracia representativa. Um engano com consequências desastrosas à concepção de vida democrática.
Em contextos como esse surgem as condições para as perseguições políticas através do uso pervertido do direito. E o significante “corrupção” aparece, então, com um elemento mistificador que faz com que tudo, inclusive as ilegalidades, pareça justificado aos olhos da população que desconhece os objetivos políticos e ideológicos por de trás dos processos de lawfare.
Corrupção, por definição, é a violação dos padrões normativos de um determinado sistema. Não raro, com a “boa intenção” de “combater a corrupção” do sistema político, atores jurídicos acabaram por corromper o Sistema de Justiça e mesmo as bases democráticas. A corrupção tornou-se uma espécie de significante vazio que instaura um “vale tudo” nas instituições e na sociedade.
Esses atores jurídicos que assumiram o protagonismo do “combate à corrupção”, apesar de se apresentarem como “salvadores da pátria”, ignoram (ou fingem ignorar) que os mecanismos tradicionais de controle e apuração da corrupção não dão mais conta de identificar e reagir aos episódios de corrupção. Na realidade, a corrupção passa a ter um novo funcionamento e uma nova lógica em consequência da aproximação entre o poder político e o poder econômico que leva à transformação do interesse privado dos detentores do poder econômico em interesse público. Com a mudança da relação entre a esfera pública e a privada, que se dá no momento em que o poder político volta a se identificar com o poder econômico, ocorre uma mutação no paradigma da corrupção real. Isso porque desaparece o conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados. Desaparece a mediação que existia entre corruptor, corrompido e o objeto da corrupção: o corruptor realiza diretamente o ato corrompido. Não há mais uma relação oculta voltada a produzir efeitos econômicos a partir do poder político; os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer disfarce, como “interesses públicos”.
Em apertada síntese, atualmente, os verdadeiros corruptos estão protegidos das ações dos atores jurídicos e o discurso de “combate à corrupção” voltou-se para episódios banais ou, o que é pior, para a manipulação política da população. Diante da nova configuração e dinâmica da corrupção no Estado, o discurso de “combate à corrupção” e as ações a ele correlatas passam a ser apenas tentativas de moralização do campo do imaginário relacionado à atividade estatal, sem a preocupação com a corrupção produzida pelo mercado e ineficaz em relação à corrupção real. Em outras palavras, ao lado da ineficácia de se pretender combater a verdadeira corrupção através do Sistema de Justiça Criminal, existe a funcionalidade real da utilização do significante “corrupção” no intuito de autorizar o afastamento de direitos e garantias previstos na legislação brasileira.
Se a sensação de corrupção aumenta no Estado diante da colonização da democracia representativa pela economia, cresce também o apelo popular por medidas que eliminem a corrupção. É esse apelo popular que acaba manipulado para permitir o afastamento dos limites éticos e jurídicos ao exercício do poder penal.
Ao longo da história do Brasil (como acontece também em diversos países), o discurso de “combate à corrupção” sempre foi utilizado contra os inimigos políticos dos detentores do poder econômico. Nas raras vezes em que não houve uma plena identificação entre poder político e poder econômico, as elites econômicas, amparadas por seus meios de comunicação de massa, recorreram ao significante “corrupção” a fim de enfraquecer adversários, pautar governos ou criar condições para golpes de Estado, brandos ou severos. O falso (e seletivo) combate à corrupção, como percebeu o cientista social Jessé de Souza, surge no Brasil “como o ‘testa de ferro universal’ de todos os interesses inconfessáveis que não podem se assumir enquanto tais”.
Atualmente, esse processo de utilização política do significante “corrupção”, sempre atribuída ao outro, torna-se ainda mais fácil. Isso se dá através da transformação do “combate à corrupção” em mercadoria, um bem que não apresenta contornos rígidos, é maleável e seletiva, mas que acaba vendida como de interesse de todos e utilizável contra todos os indesejáveis. A mercadoria “combate à corrupção” tem consumidores cativos, um público formatado para aplaudir qualquer ato que se afirma “contra a corrupção”, mesmo que ineficaz ou draconiano. O “combate à corrupção” vendido à população, sempre ao gosto dos proprietários dos meios de comunicação de massa, não atinge as elites econômicas e nem seus privilégios, mas permite ações, nem sempre legítimas, contra os indesejáveis, inclusive os adversários políticos dos detentores do poder econômico e das agências do Sistema de Justiça.
Esse “combate” conta com os ingredientes que permitem transformar processos judiciais em espetáculos, políticos amados em odiados, inquisidores em heróis, uma vez que essa mercadoria possibilita todo tipo de distorção e manipulação afetiva do público, em especial daqueles que se eximem da faculdade de julgar em razão das informações, em regra parciais, por vezes deliberadamente equivocadas, que recebem dos conglomerados empresariais que produzem o “jornalismo” brasileiro.
Direitos e garantias fundamentais como “teste de legitimidade”
Se vários políticos acusados de crimes passaram a se dizer vítimas de perseguição ilegítima, como identificar os verdadeiros casos de lawfare? A questão não é simples. Muitas vezes, a aparência de legalidade, as paixões políticas e os discursos de justificação da persecução penal deslocam a questão para o campo perigoso dos subjetivismos. Em apertada síntese, para muitos o lawfare se dá apenas quando os desejos inquisitoriais e as violações da legalidade atingem seus aliados ou os projetos políticos a que aderem. Impõe-se, pois, estabelecer critérios objetivos à constatação do lawfare.
Em primeiro lugar, é importante averiguar se existem repercussões diretamente políticas do processo. No caso de candidatos a cargos eletivos, políticos de repercussão nacional, líderes de movimentos populares, sindicalistas e outros agentes que atuam na vida pública, essa repercussão é evidente.
Identificada a repercussão tipicamente política do processo, é preciso recorrer à normatividade constitucional e, mais precisamente, verificar se os procedimentos obedecem aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos para todos os cidadãos. O inimigo, por definição, é o não-cidadão, aquele que não tem direitos. Saber se o “instrumental jurídico” está sendo utilizado como “arma de guerra” passa, portanto, por identificar se os direitos dos réus foram, ou não, respeitados.
Como é impossível descobrir os objetivos ocultos na mente dos atores jurídicos ao instaurarem ou conduzirem um determinado processo criminal, torna-se necessário atestar a legitimidade da persecução penal a partir do exame da adequação do procedimento às regras e princípios constitucionais. Dito de outra forma: o respeito aos direitos e garantias fundamentais, pensados como limites à opressão e ao arbítrio, funciona também como uma prova da inexistência de lawfare. Por outro lado, a violação da normatividade constitucional configura forte indício de perseguição política pela via judicial.
Assim, por exemplo, servem para demonstrar a ocorrência de lawfare:
- A desconsideração das formas processuais (que, nas democracias, funcionam como uma garantia contra o arbítrio);
- O vazamento para a mídia dos conteúdos sigilosos do processo penal, o que potencializa o assédio ilegítimo contra o acusado, seus familiares ou aliados;
- A violação reiterada dos direitos do réu, tais como a ampla defesa e o contraditório;
- A rapidez atípica (ou de acordo com o calendário eleitoral) conferida ao julgamento de uma acusação em detrimentos de outros casos mais antigos que esperam para serem julgados;
- A existência de sinais de parcialidade do julgador, tais como o fato do juiz: 1) orientar ou coordenar a acusação; 2) permitir “vazamentos” ilegais de conversas sigilosas; 3) fazer lobby junto a outros órgãos jurisdicionais para ver suas posições no processo mantidas; 4) produzir provas em substituição ao órgão acusador; 5) adotar medidas atípicas (por exemplo, interromper as férias) para evitar a liberdade do réu, etc.;
- A produção e valoração das provas em desconformidade com os limites jurídicos, éticos e epistemológicos; etc.
Nos últimos anos, o número de casos de lawfare tem apresentado notável crescimento em todo mundo. Isso se deve, basicamente, às tentativas de manter as aparências de normalidade democrática, mesmo diante de práticas e finalidades típicas de regimes autoritários. Assim, por exemplo: no lugar de impedir as eleições ou promover um golpe “duro” de Estado, é mais eficaz, e politicamente menos traumático, eliminar, através do Sistema de Justiça e com aparência de legalidade, os candidatos indesejáveis ou destituir um presidente eleito através de um procedimento aparentemente legal. Por isso, compreender o fenômeno do lawfare e desvelar o mito da neutralidade do Sistema de Justiça são fundamentais para qualquer projeto democrático de sociedade.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano
Saiba mais. Leia: Breve roteiro para identificar perseguições políticas através do Sistema de Justiça
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