Ex-ministro da Justiça José Carlos Dias defende a anulação do julgamento de Lula
Referência na área penal, o advogado afirmou em entrevista que “o STF está intimidado pela opinião pública e nunca esteve tão mal quanto agora”
Confira:
Referência no direito penal e na defesa dos direitos humanos, José Carlos Dias acompanha com preocupação os últimos passos do Supremo Tribunal Federal (STF). Prestes a completar 56 anos de experiência na área, o advogado criminalista classifica como um “despautério” a recente liminar do presidente da Corte, Dias Toffoli, que suspendeu as investigações contra o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Em sua opinião, há uma “intimidade absolutamente nociva” entre o ministro e o presidente da República, Jair Bolsonaro.
Para Dias, muitos ministros do STF estão intimidados pela pressão da opinião pública. “O Supremo nunca esteve tão mal quanto agora”, afirma. A Corte foi recentemente alvo de protestos da população. Aos 80 anos de idade, o advogado manifesta inquietação com a perspectiva de se estabelecer o critério religioso para nomeação de ministros, já que Bolsonaro promete escolher um nome “terrivelmente” evangélico para a vaga que será aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello em novembro de 2020.
Ministro da Justiça entre 1999 e 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso, Dias também não poupou de críticas o atual titular da pasta, Sergio Moro. Além de questionar o pacote anticrime, o advogado coloca em xeque a capacidade do ministro em conduzir a Polícia Federal (PF) em investigações contra integrantes do próprio governo e considera que o legado da Lava-Jato fica prejudicado com as revelações dos diálogos entre procuradores e o ex-juiz. As conversas reveladas pelo site “The Intercept Brasil”, segundo Dias, são “anormais”.
“Não se pode preparar em conjunto os próximos passos de um processo ou de que forma seria conduzido o material probatório. Tem que haver uma distinção e uma compostura entre a atuação do Ministério Público e do magistrado”, diz. Autodeclarado antipetista, o advogado avalia como insuficientes as provas que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo do tríplex e entende que o caso deveria ser declarado nulo diante das “falhas graves” cometidas por Moro e os procuradores.
Depois de declarar na campanha que só Bolsonaro para lhe fazer votar no PT, o ex-ministro reafirmou ao Valor sua contrariedade em relação ao governo federal, a despeito de seu antipetismo. “Não me recordo de um governo tão ruim como este”, afirma. Para Dias, o país vive a ditadura pelo voto e o presidente segue uma escalada autoritária em uma tentativa de testar as instituições e os princípios democráticos. A seguir os principais trechos da entrevista, concedida em seu escritório, no centro da capital paulista.
Valor: Nos últimos tempos, o Supremo tem sido alvo de muita pressão por parte da opinião pública. Como o senhor avalia o papel da Corte diante destas cobranças?
José Carlos Dias: O Supremo nunca esteve tão mal quanto agora. O presidente da Corte, Dias Toffoli, acaba de cometer mais um despautério com essa decisão que tomou em relação ao Flávio Bolsonaro [objeto de recurso da Procuradoria-Geral da República, impetrado ontem]. Isso jamais poderia sair de uma decisão monocrática. O caso é de tanta gravidade que deveria ter sido levado ao plenário. O pior ainda é o presidente do Supremo dizer que o processo será levado ao plenário apenas em novembro. Se ele decidiu agora conceder uma liminar de forma monocrática, por que somente em novembro o caso será levado ao plenário?
Valor: O senhor acredita que a análise do caso poderia ser antecipada?
Dias: Toffoli deveria levar a questão para análise do plenário na primeira sessão após o recesso, em agosto. Esse episódio revela que vivemos uma crise muito grande. O Supremo está indo muito mal. Há uma intimidade [do Toffoli] com o Poder Executivo e o presidente da República que é absolutamente nociva ao país. Tem que haver independência entre os Poderes.
Valor: Essa busca pela intimidade parte de quem?
Dias: Dos dois lados. O Toffoli decepciona. Além disso, muitos ministros estão intimidados pela opinião pública. Ainda bem que o decano, que considero o melhor ministro do STF, mantém uma postura de equilíbrio, assim como Ricardo Lewandowski e o Marco Aurélio Mello.
“O que estamos vivendo hoje no Brasil é a ditadura pelo voto. Acho o governo Bolsonaro um desastre”
Valor: O presidente Bolsonaro sinaliza com a possibilidade de indicar um nome “terrivelmente” evangélico para vaga no Supremo que será aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Como avalia essa possibilidade?
Dias: É um absurdo. Onde se vê um presidente da República dizer uma coisa desta? O que é terrivelmente evangélico? A Constituição diz que para nomear um ministro do STF tem que ser alguém de idoneidade absoluta, reputação ilibada e conhecimento jurídico. A Constituição ainda mantém toda característica laica do sistema jurídico brasileiro. Ele vai escolher um ministro do Supremo pela religião? Não tem cabimento.
Valor: Em seu mandato, Bolsonaro poderá indicar, no mínimo, dois ministros. Se for reeleito, mais dois. A laicidade do Estado corre risco?
Dias: Pode ser. Depende dos indicados e do Senado.
Valor: Como ex-ministro da Justiça, como o senhor vê o desempenho de Moro na pasta?
Dias: Ele não está indo bem. O pacote anticrime deveria ser amplamente debatido com a sociedade civil antes de ser encaminhado ao Congresso Nacional. As propostas são inadequadas, mesmo a questão do abuso de autoridade, que foi inserida depois pelos parlamentares. Não consigo entender também a briga do Moro pelo Coaf. Tudo faz parte do mesmo governo. Não vejo razão para ele querer ter tanto nas mãos este instrumento perigoso. Outra questão que me preocupa é essa decisão de excluir vagas da sociedade civil no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Isso tudo agora ficará concentrado nas mãos do Moro. A presença de pessoas de fora do governo no conselho é importante para o equilíbrio do debate.
Valor: A Polícia Federal (PF) está subordinada ao ministro Moro. Ele conseguirá levar adiante investigações que envolvam o governo?
Dias: Não sei. Mas essa é outra preocupação que tenho. Me lembro que quando estava no ministério havia pressões de todos os lados. Embora administrativamente subordinada a Moro, a PF tem que ter uma posição de equidistância e de independência em relação ao governo.
Valor: Diante das revelações do site “The Intercept Brasil”, qual o legado da Lava-Jato? As conversas divulgadas mancham a imagem da operação e do próprio ministro Moro?
Dias: O trabalho da Lava-Jato foi e é importante. Mas o legado fica prejudicado. Houve falhas graves cometidas pelo Moro e pelos procuradores. Eles não precisavam ter feito isso. As revelações do site são graves. Os diálogos mostraram um conluio absolutamente inaceitável entre o Ministério Público e a magistratura. O jogo começado com cartas marcadas, depois do que era combinado entre eles, está viciado.
Valor: Tanto o ministro quanto o procurador Deltan Dallagnol alegam que não há nada de anormal nas conversas.
Dias: Acho tudo absolutamente anormal. Da mesma forma que se tivesse acontecido essas mesmas conversas entre juízes e advogados de defesa. Não se pode preparar em conjunto os próximos passos de um processo ou de que forma seria conduzido o material probatório. Tem que haver uma distinção e uma compostura entre a atuação do Ministério Público e do magistrado.
Valor: O senhor acha que a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria ser anulada?
Dias: Acho que sim. Entendo até que ele [Lula] não deveria ter sido condenado no caso do tríplex, mesmo com toda a maquiagem que foi feita. Acho que ele [Lula] poderá vir a ser definitivamente condenado por outros casos. Agora, as conversas levam à necessidade de determinar a nulidade deste processo.
Valor: No segundo turno da eleição de 2018, o senhor disse que só o Bolsonaro para fazê-lo votar no PT. Pelo visto, o senhor mantém sua posição após quase oito meses de governo.
Dias: Não me recordo de um governo tão ruim como este. É lógico que eu lembro da ditadura, mas eu digo comparando com governos eleitos de forma democrática. O que estamos vivendo hoje no Brasil é a ditadura pelo voto. Acho o governo Bolsonaro um desastre. O presidente é uma pessoa que se pudesse traria toda a ideologia de segurança nacional da ditadura para implementar agora no Brasil. Tenho receio mesmo e estou assustado.
Valor: É um desastre de que ponto de vista?
Dias: Todos. É impressionante como este governo vai se aprimorando na arte de fazer pior. Ele escolheu as redes sociais e despreza a mídia tradicional. Ele insufla seus eleitores a assumir posições absurdas. Você veja agora o que ele fez com a Miriam Leitão, uma jornalista independente e de uma seriedade extraordinária e que sofreu mesmo, foi torturada violentamente. Então, Bolsonaro vai contra a liberdade de expressão. Veja o caso da declaração dele sobre o filme [“Bruna Surfistinha”]. Ele segue uma escalada autoritária.
Valor: O senhor acredita que seja uma estratégia do presidente em esticar a corda e testar as instituições e os princípios democráticos?
Dias: Acho que sim. A escolha do filho dele para embaixador dos Estados Unidos é de uma ousadia terrível e serve de exemplo disso.
“Diálogos mostraram um conluio inaceitável entre o Ministério Público e a magistratura”
Valor: Passados cinco meses da criação da Comissão Arns, qual o diagnóstico da situação dos direitos humanos no Brasil hoje? Há um retrocesso em relação aos governos anteriores?
Dias: Indiscutivelmente. Em nenhum governo anterior houve violências como as que foram praticadas agora. Para ficar em um exemplo, cito a dissolução de conselhos e a exclusão de representantes da sociedade civil do Conad. Mas há retrocessos na questão da educação, do meio ambiente, na demarcação de terras indígenas, contra as minorias. Tanto é assim você vê ministros de gestões passadas se reunindo para apontar todos esses absurdos, que são uma marca deste governo.
Valor: Como o senhor vê a possibilidade de liberação da posse e do porte de armas?
Dias: As pesquisas mostram que a grande maioria da população é contra esse retrocesso. Temos que resistir. Essa é a bandeira da Comissão Arns. Vamos nos reunir no dia 8 de agosto, em Brasília, para preparar uma mesa de avaliação das violências no Brasil junto com outras entidades. A maior parte das armas usadas por bandidos veio de pessoas que tinham o direito de usar. Além disso, a arma não traz segurança. Ao contrário, aumenta o perigo. O Instituto Sou da Paz conta com trabalhos e estudos específicos sobre isso.
Valor: Na semana passada o presidente deu uma declaração polêmica ao afirmar que não há fome no Brasil. Depois ele recuou e disse que havia sido mal interpretado pela imprensa. Como o senhor vê este tipo de declaração?
Dias: É uma desfaçatez. Acho que nunca houve tanta exposição da miséria quanto hoje. É doloroso dizer, mas saímos tropeçando em pessoas estendidas nas calçadas. E não são todos os que estão nas ruas viciados em crack. Há muitas vítimas da fome e da miséria. Em São Paulo, a cidade mais próspera do Brasil, há um contingente enorme de miseráveis espalhados pelas calçadas. É impossível que ele não veja isso. Um presidente tem que manter um equilíbrio, uma impessoalidade diante das grandes questões apresentadas.
Valor: Em fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil tem se associado com alguns países islâmicos contra o uso de expressões como “gênero” e “educação sexual” e a favor da “estruturação e do fortalecimento das relações de família”. Nesta linha, que tipo de mensagem passamos ao mundo?
Dias: No momento em que o Brasil assume uma posição dessa em conluio com outros países que têm posturas semelhantes, estamos retroagindo na nossa história.
Valor: Lideranças do governo, da base aliada e até ministros defendem a ideia de revisitar a história, sobretudo em relação ao período militar e o golpe de 1964. Como o senhor vê este tipo de revisionismo?
Dias: Uma coisa importante que Comissão Nacional da Verdade fez foi fazer um levantamento das piores violações realizadas durante o período ditatorial, desde 1946, antes até da ditadura, para que as novas gerações tomem conhecimento do que aconteceu. Fizemos de uma maneira não artificial, baseada em dados, mostrando elementos. Um relatório da CIA depois confirmou o que consta no relatório da CNV. Ou seja, a tortura e as mortes praticadas contra opositores. Aquilo fazia parte de uma política de Estado. Não tenho dúvida em dizer que [Ernesto] Geisel, [Emilio Garrastazu] Médici e [Artur da] Costa Silva são coautores dos homicídios que foram praticados em nome da ditadura. Agora querer anular isso me faz lembrar o livro “1984”, de George Orwell.
Valor: Por quê?
Dias: Como você pode negar que o coronel [Carlos Alberto] Brilhante Ustra era um grande torturador? Nosso presidente o considera um grande herói e o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, repete a mesma coisa. É lamentável. Como advogado, eu defendi mais de 500 presos políticos, sendo muitos torturados no DOI-Codi sob a coordenação do coronel Ustra. O Bolsonaro vai tentar e já está tentando revisitar a história. Cabe à sociedade civil, entidades que defendem os direitos humanos, como a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e a Comissão Arns, entre outras, mostrar que aquilo realmente aconteceu e que não podemos permitir que volte a acontecer.
Valor: O fato de o Brasil ter demorado a rever os crimes pode ter alguma relação com esta negação por parte do presidente e de alguns setores da sociedade?
Dias: Teria sido melhor se tivéssemos nos reunidos antes. Sem dúvida. A comissão começou a existir muito tempo depois de terminada a ditadura. Boa parte dos generais e militares já havia morrido. Outra parte era composta por oficiais já velhinhos. Ficávamos naquela situação de pressioná-los a contar as barbaridades.
Valor: Deveriam, então, ter ocorrido eventuais punições?
Dias: A comissão recomendou que a Lei da Anistia fosse revista. A meu ver este é o entendimento adequado. Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistia. Era o caso de seguir o exemplo de outros países da América Latina.
Valor: Na campanha eleitoral, o senhor defendeu a necessidade de uma união das forças progressistas para derrotar Bolsonaro. Essa união deveria ocorrer agora, na oposição ao governo?
Dias: Mais do que nunca. Se pudesse unir partidos de centro, esquerda e de direita, mas que tivessem independência e posições mais lúcidas, seria ótimo. É importante que ex-presidentes se manifestem, ainda que seja impossível unir Temer, Dilma e FHC. Mas cada um poderia assumir uma posição de vanguarda para denunciar os abusos.
Saiba mais. Leia: https://www.valor.com.br/politica/6362537/o-stf-esta-intimidado-pela-opiniao-publica
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