Stonewall: Entenda origens do Dia do Orgulho LGBTQIA+
Manifestações relembram os mártires da resistência LGBTQIA+, a exemplo dos protestos #JustiçaPorLindolfo, jovem gay Sem Terra brutalmente assinado no Paraná
“Estou aqui orgulhosamente no lugar onde o Orgulho começou, o lendário Stonewall Inn, no nascimento de um novo ano. Unimo-nos esta noite para celebrar os 50 anos da revolução!”, falou Madonna, gravada por muitos celulares. “Nunca vamos nos esquecer dos motins de Stonewall e daqueles que se levantaram e disseram ‘Basta!'”
E prosseguiu: “Nossos irmãos e irmãs antes de nós não eram livres para celebrar como estamos fazendo hoje à noite, e nunca devemos esquecer isso. Stonewall foi um momento decisivo na história, catapultando os direitos LGBT em conversas públicas e despertando o ativismo gay”.
Esse evento ocorrido no bar Stonewall Inn em Nova York, nos EUA, em 28 de junho de 1969, é considerado o marco do movimento de liberação gay e o momento em que o ativismo pelos direitos LGBT ganha o debate público e as ruas.
É por causa da revolta de Stonewall que o orgulho LGBT (Lésbico, Gay, Bissexual, Transexual, Travesti) é celebrado em junho – o Dia do Orgulho é na mesma data em que aconteceu o levante em Nova York, no 28.
Entre junho e julho, as principais cidades do mundo apresentam suas paradas gay, com multidões nas ruas levantando a bandeira do arco-íris (símbolo do orgulho LGBT).
Manifestantes plantam árvores em protesto #JustiçaPorLindolfo
No primeiro ano da revolta de Stonewall, houve manifestações LGBT em Nova York, Los Angeles, San Francisco e Chicago, para relembrar a data. Em Nova York, os manifestantes caminharam 51 quarteirões, do East Village até o Central Park. No ano seguinte, a marcha para relembrar Stonewall chegaria à Europa, acontecendo também em Londres, em Paris, na parte ocidental de Berlim e em Estocolmo.
Neste ano, as principais paradas gay do mundo – como a de São Paulo, que aconteceu no dia 23 de junho – decidiram homenagear os 50 anos do acontecimento dessa revolta.
“Stonewall funda um novo tipo de movimento LGBT. Criou essa ideia do orgulho, das pessoas LGBT ocupando o espaço público, assumindo suas identidades e se orgulhando dessas identidades e de práticas de sexualidade e de gênero”, afirma à BBC News Brasil Renan Quinalha, professor de direito da USP (Universidade Federal de São Paulo), ativista de direitos humanos e um dos autores do livro A História do Movimento LGBT no Brasil.
Mas o que foi a revolta ou rebelião de Stonewall, citada inclusive pelo ex-presidente dos EUA Barack Obama em seu discurso de posse?
Na Nova York daquele ano de 1969, o bar Stonewall Inn, no East Village, era ponto de encontro dos marginalizados da sociedade – em sua maioria, gays.
Até 1962, relações entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas crime em todos os Estados americanos. Naquele ano, pela primeira vez, um Estado, o de Illinois, alterou seu Código Penal e a homossexualidade deixou de ser crime. Apenas em 1972 outros Estados começaram a fazer a mesma coisa. Em Nova York, isso aconteceria nos anos 1980. Somente em 2003 essa lei seria abolida de vez.
Diferentemente de outros lugares que também recebiam o público LGBT na cidade, ali a maioria dos frequentadores eram jovens da periferia, sem-teto (muitos que haviam deixado suas famílias por causa de preconceito, segundo relatos em livros) e drag queens.
A polícia fazia vista grossa ao estabelecimento porque seus donos, que tinham relação com a máfia, pagavam propina para que ele funcionasse. Estes donos também aproveitavam para chantagear os frequentadores famosos ou com mais dinheiro.
O local não tinha licença para a venda de bebida alcoólica e não respondia a uma série de outras regulamentações como ter saída de emergência. E várias batidas policiais estavam sendo feitas em bares naquela época, principalmente para controlar quem podia vender álcool.
Na madrugada do dia 28 de junho de 1969, a polícia resolveu fazer mais uma batida no bar. Era a terceira vez em um espaço curto de tempo que policiais faziam essa ação em bares gays daquela área.
Nove policiais entraram no local e, sob a alegação de que a venda de bebida alcoólica era proibida ali, prenderam funcionários e começaram a agredir e a levar sob custódia alguns frequentadores travestis e ou drag queens que não estavam usando ao menos três peças de roupa “adequadas” a seu gênero, como mandava a lei.
Treze pessoas foram detidas. Algumas, ao serem levadas para a viatura, decidiram provocar os policiais fazendo caras e bocas para a multidão. A polícia então começou a usar de mais violência para fazê-las entrar nos carros.
A partir daquele momento, a multidão fora do Stonewall Inn começou a jogar moedas nos policiais e, em seguida, garrafas e pedras. Também tentaram virar de cabeça para baixo uma viatura.
Os policiais fizeram uma espécie de barricada para se defender dos manifestantes e acabaram sendo encurralados dentro do bar.
Alguém atirou um pedaço de jornal com fogo dentro do Stonewall Inn, e começou um incêndio. Os policiais, que usavam uma mangueira para conter as chamas, decidiram também usar aquela água contra a multidão.
A partir deste momento, parte da comunidade gay de Nova York, que até então se escondia, foi às ruas protestar nos arredores do Stonewall Inn durante seis dias.
Pela manhã, quando o último policial deixou o Stonewall Inn, a gerência do bar colocou um aviso de que o local voltaria a funcionar normalmente, e assim o fez. Mas os manifestantes foram para as ruas novamente protestar por seus direitos naquela e nas noites seguintes.
Os manifestantes demonstravam orgulho de ser quem eram e provocavam a ordem e a polícia, como relata o jornalista Lucian Truscott IV, na reportagem sobre a revolta publicada no jornal Village Voice. “Mãos dadas, beijos e poses acentuavam cada um dos aplausos com uma libertação homossexual que havia aparecido apenas fugazmente na rua antes”, escreveu ele.
Em 2015, a Prefeitura de Nova York tornou o bar monumento histórico da cidade. Um ano depois, o ex-presidente Barack Obama decretou que o bar seria o primeiro monumento nacional aos direitos dos LGBTQ.
A revolta ou rebelião de Stonewall foi um momento decisivo para o movimento de liberação gay. Seis meses após ela ocorrer, surgiriam as primeiras organizações nos EUA, como a Frente de Liberação Gay.
“Não foi a primeira vez que houve assédio e violência policial contra a população LGBT. Esse é um problema crônico. É constitutivo da identidade LGBT essa relação com a violência de Estado, a violência LGBTfóbica diluída na sociedade.”
“Stonewall reúne singularidades importantes. Acontece em 1969 após o movimento de libertação sexual, com uma série de condições específicas de Nova York, uma sociedade extremamemnte desenvolvida com uma série de contradições naquele momento. E acontece numa região do East Village que de fato era um bolsão, onde havia uma diversidade grande de pessoas, de migrantes, de latinos. Havia também (à época) um caldeirão em relação à desigualdade. Teve também a questão da mobilização contra a Guerra do Vietnã”, explica.
“Uma série de condições faz com que Stonewall vire um episódio signficativo e bastante singular em relação ao que havia antes (no movimento LGBT). Havia lutas e resistência anteriores, havia o Mattachine Society, em São Francisco.”
Quando a revolta de Stonewall aconteceu, o Brasil passava por um dos piores momentos da ditadura militar. Menos de um ano antes, em dezembro de 1968, havia sido outorgado o Ato Institucional nº 5, que retirava uma série de liberdades civis e de direitos individuais e que fez aumentar a censura.
Naquele momento, Stonewall não fazia sentindo nenhum para o Brasil, segundo Quinalha. “A ditadura acabou atrasando em dez anos a emergência do movimento LGBT no Brasil”, fala.
“Era um período de emergência de movimentos LGBT em países latinos e o Brasil também poderia (fazer parte), porque tinha condições pra que emergissem esses grupos, mas isso acaba não acontecendo por conta da repressão”
O autor e ativista diz que apenas em 1978 começa uma organização mais efetiva do movimento LGBT no país, no período de liberalização da ditadura.
Quinalha também conta que não havia um local no Brasil como o Stonewall Inn, que reunisse a comunidade daquela maneira. “Havia lugares de sociabilidade LGBT, de pegação, de interação, mas não havia um lugar que centralizasse tudo isso.”
Do ponto de vista simbólico, no entanto, ele acredita que alguns episódios ocorridos no país possam ter uma espécie de vínculo com Stonewall. Por exemplo: quando no Dia do Trabalho de 1980 um grupo LGBT se une à classe trabalhadora num ato do movimento sindical, que estava sob intervenção da ditadura, na Vila Euclides, em São Bernardo do Campo (SP).
O outro aconteceria em 13 de junho de 1980, quando várias pessoas protestaram contra a violência policial e o delegado José Wilson Richetti, que comandava ações de repressão. “Foi uma aparição pública forte do movimento LGBT.”
Quatorze anos depois da revolta de Stonewall haveria uma relação mais direta daquele evento com o movimento LGBT brasileiro. Em 19 de agosto de 1983, um protesto que ocorreria em um bar frequentado por mulheres gay em São Paulo, o Ferros’s Bar, ganharia o nome de “O pequeno Stonewall Inn” brasileiro.
Na véspera, o dono do bar no centro de São Paulo (anos depois o local abrigaria outro famoso ponto da noite paulistana, o Xingu), que era referência para a comunidade lésbica, havia chamado a polícia e impedido algumas mulheres de vender no local uma publicação chamada “ChanacomChana”, porque esta “atentava contra os bons costumes”.
No dia seguinte, várias frequentadoras e ativistas invadiram o Ferro’s para ler ali um manifesto em defesa dos direitos das lésbicas.
Em 2003, a data deste protesto, 19 de agosto, se tornaria o Dia do Orgulho Lésbico no Brasil.
Da BBC Brasil.