Uma estratégia revolucionária contra Bolsonaro. Artigo por Valério Arcary, do PSOL
A gravidade da crise nos coloca a necessidade de uma reflexão mais estratégica sobre o futuro do governo Bolsonaro. Há muita ansiedade no ar e ela contamina a necessária lucidez quando precisamos discutir estratégia e tática. Quem pensa que é iminente a queda de Bolsonaro se precipita. Ainda não.[1] Bolsonaro está, política e socialmente mais frágil, mas ainda tem muito apoio.
No entanto, se os piores prognósticos sobre a pandemia se confirmarem, a realidade atual pode mudar, abruptamente. Admitindo essa possibilidade, como um exercício de antecipação de cenários, existem diferentes hipóteses em graus de probabilidade variados. Elas se dividem, em primeiro lugar, em dois grandes campos. Ou uma transição “pelo alto” a “frio” puramente institucional, ou uma queda do governo encurralado por uma mobilização de massas à chilena. Claro que a vida é sempre mais complexa que os modelos teóricos, porque as combinações mais esdrúxulas são possíveis. Mas são dois caminhos distintos.
Uma transição institucional pelo alto “a frio” poderá assumir várias formas: (a) uma renúncia negociada; (b) uma solução parlamentar como o impeachment e a posse de Mourão; (b) uma cassação do mandato pelo Supremo Tribunal Federal. Não é razoável, neste momento, discutir quais entre elas seriam menos ou mais prováveis. Não é possível saber, por enquanto. Seria um exercício de imaginação.
O argumento deste artigo é que todas as diferentes hipóteses de transição pelo alto “a frio” são muito improváveis. Porque é inverossímil que as forças sociais e políticas que articularam o golpe contra o governo de Dilma Rousseff em 2016 se unam para defender um afastamento de Bolsonaro em 2020. Os riscos seriam altos demais. Porque sabem que Bolsonaro não cai sem resistência, e temem muito mais as massas populares nas ruas do que Bolsonaro no poder. Temem as massas porque sua estratégia é a continuação do projeto de destruição das conquistas sociais dos trabalhadores.
Seria mais um gravíssimo precedente institucional – dois governos interrompidos em sequência – e um suicídio político diante de sua base social burguesa e de classe média acomodada. Apostam no desgaste de Bolsonaro e nas eleições de 2022. Mas essa não deve ser a estratégia da esquerda.
As forças burguesas que hoje se deslocam, parcialmente, para um terreno de “oposição de exigências” a Bolsonaro, sejam Maia ou Toffoli, Doria ou Witzel, não merecem nenhuma confiança. O mais provável é que, se não for construída uma mobilização popular para derrubá-lo, Bolsonaro deve conseguir chegar até o fim de seu mandato em 2022, e será um inimigo terrível.
Do que decorre que a estratégia mais plausível para esquerda não deve ser a busca de uma negociação com o centrão articulado por Maia, mas um posicionamento independente que aposte na mobilização de massas, quando for possível voltar às ruas. O centro da tática, neste momento, é a luta por um Plano de emergência que imponha uma quarentena total para salvar vidas, centrado na denúncia de Bolsonaro. Mas a estratégia é a luta para que amadureçam as condições para derrubar Bolsonaro antes de 2022.
A luta pela derrubada revolucionária de Bolsonaro não é somente a melhor estratégia, é a mais realista, a mais razoável. E esta avaliação é urgente, porque o perigo de que uma parcela da esquerda se oriente na busca de uma concertação com os governadores, o STF e a maioria burguesa no Congresso é real. Não seria somente perda de tempo. Seria semear ilusões. E antes de chegarmos a uma situação semelhante à do Chile no ano passado, é bom retirarmos as lições. Afinal, Piñera continua no Palácio de La Moneda.
Eis os fundamentos histórico-teóricos do argumento. A investigação da época posterior ao triunfo da primeira revolução socialista em 1917 revelou uma característica perturbadora: a necessidade de revoluções políticas até para a mudança de regimes políticos de dominação, ou mesmo a derrubada de governos.
Ou seja, o extremo reacionarismo das classes proprietárias na época em que o sistema já superou a sua fase histórica de gênese e apogeu, e iniciou sua decadência. A maioria dos regimes tirânicos dos últimos cem anos, em todos os continentes, foi derrotada por revoluções políticas. As transições pelo alto foram excepcionais. Revoluções políticas não são iguais a revoluções sociais, mas não deveriam ser reduzidas à categoria de crises políticas graves.
No século XX todas as revoluções que triunfaram derrubaram ditaduras. O Czarismo era uma monarquia absolutista arcaica e monstruosa. Todas as revoluções socialistas do pós-guerra venceram contra regimes tirânicos: a Yugoslávia sob ocupação nazista, a China do Goumintang, o Vietnam sob ocupação francesa, a Cuba de Batista.
Mas no século XXI já triunfaram, mais de uma vez, revoluções políticas contra governos eleitos em regime democrático-liberal, ainda que somente em países periféricos. O exemplo argentino em 2001 com a derrubada de De la Rua é o mais emblemático. Ficou provado que era possível.
As transições controladas de regimes ditatoriais para regimes democráticos foram ficando muito mais difíceis, seja pela gravidade das crises, seja pela entrada em cena de sujeitos sociais populares urbanos, em especial, a mobilização do proletariado e das massas populares. Há um novo padrão histórico nos processos de mudança de regime: o recurso aos métodos da revolução foi se tornando indispensável para derrubar governos tirânicos.
A transição de regimes ditatoriais para regimes democrático-liberais, sem uma ruptura política provocada pela irrupção das massas em mobilizações gigantescas, como a experiência pós-franquista do Pacto de La Moncloa[2] na Espanha no final dos anos setenta, ou no Chile de Pinochet[3] nos anos noventa, continuou acontecendo, porém, foi excepcional. Quase sempre as transições pelo alto foram uma consequência de processos de ruptura que comoveram nações vizinhas e ameaçavam contágio – a revolução portuguesa de 1974/75, no caso espanhol, e as situações no Peru e Argentina, ao final dos anos oitenta, no caso chileno. Ou seja, uma adaptação preventiva ao perigo de uma situação revolucionária iminente.
Da ditadura do czar em 1917 até ao regime Baby Doc Duvalier no Haiti, passando pelas ditaduras militares no Brasil e na Argentina nos anos oitenta, ou as Filipinas de Marcos em 1986[4] ou a Indonésia de Suharto em 1998[5], foram incontáveis os processos de mobilização de massas que derrubaram ditaduras com milhões de pessoas nas ruas.
Na época histórica anterior à revolução de Outubro, o padrão foi outro: as passagens de regime político eram gradualistas e assumiam, predominantemente, a forma de transições por cima, a chamada via prussiana na Alemanha, estudada por Lenin, ou a revolução passiva na Itália, observada por Gramsci.
Que as mais diferentes burguesias nacionais tenham tido dificuldades crescentes em articular transições seguras e controladas pelo interior das instituições do regime anterior ou, em outras palavras, que tenham sido necessárias revoluções democráticas ou de “fevereiro”, não é um tema secundário na interpretação histórica.
A força de inércia das ditaduras que resistiram durante décadas, merece ser examinada como uma das características da abertura de uma época revolucionária, nas palavras de Lênin, uma época de revoluções e guerras. Que a defesa do capitalismo, depois do Outubro russo, tenha exigido que a burguesia recorresse a regimes ditatoriais abomináveis, capazes de usar a repressão mais brutal e bárbara, ou até aos métodos da guerra civil, porque se sentia ameaçada pelo perigo de novas revoluções sociais, em inúmeros países e em todos os continentes, não pode deixar de ser considerado quando avaliamos a natureza da época histórica.
Resumo da ópera: Bolsonaro terá que ser derrubado.
Escrito por Valério Arcary, publicado na Revista Fórum.
[1] Por quatro razões mais importantes: (a) porque governos não caiem somente pelos seus erros, têm que ser derrubados, ou seja, deslocamentos de governos “a frio”, pelo alto, em transição negociada, é um desenlace muito raro e excepcional; (b) porque embora a classe dominante esteja dividida em dois blocos diante da pandemia, ainda prevalece a pressão pela governabilidade na forma de um acordo com governadores e prefeitos; (c) porque o governo Bolsonaro mantém uma base social importante na classe média, e mesmo setores populares, apesar de um crescente desgaste; (d) porque ainda pesa e muito o impacto das derrotas acumuladas nos ombros da classe trabalhadora, a despeito de uma disposição de luta mais elevada na juventude.
[2] O Pacto de la Moncloa foi assinado em 25 de outubro de 1977, dois anos depois da morte de Francisco Franco, em uma situação de grave crise econômica e social que ameaçava transbordar em crise política de dominação, depois de quarenta anos de ditadura. Garantiu a adesão do Partido Socialista Operário Espanhol de Felipe Gonzáles e do Partido Comunista Espanhol de Santiago Carrillo à transição controlada do regime ditatorial que agonizava, preservando a monarquia dos Bourbon e deixando intacto o aparelho repressivo das FFAA. A classe trabalhadora vivia o ascenso mais importante desde o fim da guerra civil de 1936-39: entre janeiro de 1976 e as eleições de 15 de junho de 1977, mais de 7 milhões de trabalhadores realizaram greves, ou seja, um total de 88% dos assalariados da época, com um alto nível de combatividade. Para sufocar a onda de lutas que ameaçavam o regime democrático pós-Franco, que ainda não havia consolidado, o governo de Adolfo Suárez propôs um Pacto Social com os partidos representantesdostrabalhadores.
[3] Pinochet foi o general do exército chileno que encabeçou , em 1973, a quartelada contra o governo da Frente Popular liderado por Salvador Allende. Governou o Chile entre 1973 e 1990, à frente de uma das ditaduras mais ferozes do século XX. Foi, posteriormente senador vitalício de seu país. Este cargo foi criado, exclusivamente, para ele, assegurando sua imunidade política.
[4] Ferdinand Marcos e a esposa Imelda “reinaram” nas Filipinas por mais de 20 anos, de 1964 a 1986, impondo, em um dos países camponeses mais densamente povoados do mundo, uma ditadura corrupta com a plena cumplicidade dos EUA, até serem derrubados por um povo enraivecido pela pobreza que contrastava com a vida milionária do casal.
[5] Em 30/09/1965, Suharto orquestrou um golpe, apoiado pela CIA, que foi acompanhado pelo massacre de centenas de milhares de comunistas. A burguesia da Indonésia recorreu ao genocídio para preservar o seu domínio político. Suharto permaneceu três longas décadas no poder, e só caiu depois de incontíveis mobilizações de massas.