José Graziano da Silva: “Quem tem fome não pode esperar”. Entrevista completa
“Não há uma política de combate à fome hoje no Brasil”. O alerta é do pai do Fome Zero, José Graziano da Silva. Ex-ministro, ex-diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e atual diretor do Instituto Fome Zero, o brasileiro insiste que o desmonte das políticas sociais está condenando o futuro de milhões de brasileiros.
Em entrevista ao UOL, por Jamil Chade, Graziano não poupa críticas ao governo de Jair Bolsonaro, mas também destaca que uma recuperação ameaça ser lenta.
Segundo ele, a previsão da FAO é que voltar às taxas da fome no mundo que existiam antes da pandemia não vai ocorrer antes de 2030. Ele ainda cita um relatório da OXFAM, entidade que atua no combate à desigualdade e à fome, que indica que os pobres levarão 14 anos para recuperar as perdas da pandemia. “Ou seja, para voltar à situação muito ruim que já estávamos antes da pandemia”, disse.
Mas seu apelo é para que não se espere até 2023 e um eventual novo governo no Brasil para lidar com a crise. “Quem tem fome não pode esperar. Por isso é necessária uma ampla mobilização da sociedade, como ocorreu com o Fome Zero. Quem decide acabar com a fome é uma sociedade e não o governo de plantão”, disse.
Não podemos esperar 2023. Os estados e municípios, na ausência do governo federal, têm que assumir essa responsabilidade. E há muito que podem fazer, não tudo, mas muito.”
José Graziano da Silva
Suas declarações ocorrem dias depois de o UOL ter revelado com exclusividade os novos dados da FAO, que apontam para uma disparada da fome no Brasil em 2020.
“De todas as urgências que temos, o combate à fome é a prioridade absoluta que não pode esperar”, disse Graziano.
Eis os principais trechos da entrevista:
CHADE – Os novos dados da FAO revelam um aumento importante da fome no Brasil. Na avaliação do senhor, por qual motivo isso ocorreu?
Graziano – Na verdade, a novidade é que foram divulgados os dados anuais e não as médias trianuais como costuma fazer a FAO para os países. Os dados apresentados agora pelo economista chefe da FAO correspondem aos do final do primeiro ano da pandemia, 2020, e que podem ser comparados diretamente aos dados da pesquisa Vigisan. A FAO apurou que existem 8% da população brasileira que vive uma insegurança alimentar grave e a Vigisan, 9%. E 24% de insegurança moderada e grave, contra 20,5% da pesquisa da rede Penssan.
Quais são as diferenças entre esses cálculos?
São pequenas diferenças entre as duas fontes devido ao fato que o corte da escala Fies que usa a FAO é mais alto que a Ebia que usa o IBGE/Vigisan para a insegurança alimentar.
O que importa é que é um aumento muito grande da fome já no primeiro ano da pandemia. Vale dizer que o final de 2020 foi o “melhor momento” do ponto de vista que tivemos no primeiro ano um auxílio emergencial que pagou R$ 600 para mais de 65 milhões brasileiros. E, mesmo assim, mais de 19 milhões de brasileiro passaram fome.
E qual a avaliação que o senhor faz de 2021?
No segundo ano, 2021, esse auxílio emergencial foi suspenso e o que veio depois no meio do ano teve os valores reduzidos a menos da metade, além de beneficiar um número muito menor de pessoas.
Não temos ainda pesquisas para o Brasil para 2021 e uma segunda rodada da Vigisan vai a campo agora em dezembro. Mas a pesquisa da Unicef mostra em junho de 2021 que a fome afetava 17 % dos brasileiros adultos, um contingente estimado de 27 milhões de pessoas. E esse número deve ter aumentado significativamente com o fim do auxílio emergencial e essa confusão toda de acabar com o Bolsa Família.
As novas pesquisas mostrarão infelizmente que os brasileiros que passam fome podem superar os 20% ou seja, mais de 40 milhões de pessoas, sem falar das crianças. Crianças que passam fome antes dos 5 anos, se sobreviverem, levarão essa marca da desnutrição o resto da vida. Ou seja, não terão um desenvolvimento intelectual e motor normal. Estamos condenando o futuro de milhões de brasileiros.
Os dados da FAO revelam a situação completa do Brasil?
Um outro ponto a destacar nos dados divulgados é que a FAO não calcula a insegurança alimentar leve, que é quando a pessoa não tem dinheiro para comprar os produtos que usava normalmente e substitui por outros de qualidade inferior.
Deixa de comer carne e passa a comer pé-de-galinha. Ou deixa de consumir frutas, verduras e legumes, produtos frescos e saudáveis e passa a consumir apenas farinhas e produtos ultra processados, o que tende a aumentar o sobrepeso e a obesidade especialmente nas crianças e mulheres.
Segundo as pesquisas do IBGE/Vigisan, a insegurança alimentar leve chegou a quase 35% em 2020, ou seja, um de cada 3 brasileiros, numa situação em que já tínhamos antes da pandemia (2018) 25% de obesos e dois terços da população com sobrepeso.
Nas crianças isso tem o efeito de comprometer o desenvolvimento intelectual e motor futuro também, além das comorbidades associadas ao sobrepeso.
O Brasil foi destaque internacional por sua luta contra a fome. Que mensagem o recente aumento manda sobre o que significa o combate contra a fome?
Que não se pode descuidar do combate à fome e à miséria, especialmente nos países com elevada desigualdade econômica. O índice de Gini cresceu no Brasil de 0,62 em 2015 para 0,68 em 2021, um aumento brutal de quase 10% num indicador que vai de 0 a 1 e é relativamente estável por décadas. Os dados da FAO mostram claramente que os países mais afetados pelo aumento da fome na pandemia são os que tem pior distribuição da renda. Ou seja, onde não tem miséria não tem fome.
E no mundo, como está a situação?
Infelizmente, a fome e a miséria estão aumentando há anos em todo o mundo em função do baixo crescimento econômico dos países mais pobres. A ironia é que, desde que o mundo decidiu acabar com a fome em 2015 com a agenda dos objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a fome só fez aumentar.
E o pior é que as estimativas de recuperação da economia mundial indicam que levaremos pelo menos uma década para voltar ao que era antes da pandemia em 2019.
Na verdade, isso vale só para os pobres, porque os ricos já se recuperaram, como mostra o recente relatório da Oxfam. Segundo informe, “as 1.000 pessoas mais ricas do mundo recuperaram todas as perdas que tiveram durante a pandemia de covid-19 em apenas nove meses [entre fevereiro e novembro de 2020], enquanto os mais pobres do planeta vão levar pelo menos 14 anos para conseguir repor as perdas devido ao impacto econômico da pandemia”.
No caso do Brasil, o que falhou?
A razão desse aumento rápido da fome é a combinação de falta de crescimento econômico, que gerou um desemprego alto, com o desmonte das políticas sociais compensatórias para os mais pobres e das politicas de segurança alimentar e nutricional, agravados pela maior inflação dos alimentos e combustíveis que vimos na última década. A tempestade perfeita.
O governo federal subestimou a pandemia, depois subestimou a vacina e aplicou a terapia equivocada, fazendo com que o tempo de confinamento social aumentasse muito, Além de causar 600 mil mortes. Houve um outro momento na seca 1870 no Nordeste que morreram mais de 500 mil por fome no Brasil, como bem mostrou uma reportagem recente da BBC Brasil.
Esse é o resultado de um governo incompetente na gestão da economia e irresponsável no sentido que não se preocupa com os pobres, inconsequente com as gerações futuras. Falta de visão política do futuro que se deseja para o país.
Quando o senhor fala em desmonte de políticas de segurança alimentar, o que significa na prática?
O que se vê no desmonte dessas políticas, que deveriam ser políticas de Estado, foi a continua redução de verbas para os principais programas como o PAA para as compras locais, apoio à agricultura familiar, programa de cisternas, estoques reguladores.
Entre as mais importantes políticas de segurança alimentar do país, só a PNAE não teve cortes drásticos de recursos pois tem uma dotação constitucional própria. Ma mesmo a alimentação escolar teve muitos problemas com a suspensão das aulas presenciais, o que fez com que muitos estudantes perdessem a única refeição saudável que tinham nas escolas
Essa é uma postura de similar ao que se vê no desmatamento da Amazônia onde o governo “vai passando a boiada”: um desmonte sistemático do aparato de proteção social, exportando tudo que der, de minério de ferro, madeira a soja e carne, para não falar do arroz.
Quais são os caminhos para reverter essa situação?
O Brasil precisa voltar a crescer, gerar mais e melhores empregos, elevar o poder aquisitivo do salário mínimo, controlar a inflação, refazer os estoques de emergência para enfrentar situações de seca ou desabastecimento. Ou seja, recompor as políticas fundamentais de segurança alimentar num contexto macroeconômico favorável à inclusão social.
Se tiver que destacar a política mais importante que ajudou a acabar com a fome no Brasil eu apontaria o aumento do poder aquisitivo do salário mínimo que funciona como um farol para os teores informais da economia.
Dada a emergência da situação atual, precisamos também reforçar as campanhas de combate à fome com ampla mobilização social. Os municípios podem ajudar muito nesse sentido com os bancos de alimentos, cozinhas comunitárias, restaurantes populares, feiras do produtor, hortas urbanas.
Quanto tempo será necessário para voltar às taxas de 2,5% da fome?
A previsão da FAO é que isso não vai ocorrer antes de 2030, infelizmente, quando deveríamos atingir a meta de erradicar a fome.
O relatório da OXFAM que eu citei fala em 14 anos para os pobres recuperarem as perdas da pandemia. Ou seja, para voltar a situação muito ruim que já estávamos antes da pandemia.
Mas quem tem fome não pode esperar. Por isso é necessária uma ampla mobilização da sociedade, como ocorreu com o Fome Zero depois da eleição do Lula em 2002. Quem decide acabar com a fome é uma sociedade e não o governo de plantão.
Não podemos esperar 2023. Os estados e municípios, na ausência do governo federal, têm que assumir essa responsabilidade. E há muito que podem fazer, não tudo, mas muito.
O Brasil conseguiu acabar com a fome em menos de dez anos. E para isso precisou “incluir os pobres no orçamento” como costumava dizer o presidente Lula. Agora que temos uma estrutura publica montada e todo um “know-how” do que é preciso fazer para acabar com a fome, creio que o Brasil pode conseguir fazer isso em menos tempo apesar da situação dramática em que nos encontramos.
Mas para isso não da para esperar um novo governo em 2023: tem que começar agora com o que temos nos estados e municípios, que podem fazer muito se derem ao combate à fome a prioridade política número um que precisamos. De todas as urgências que temos, o combate à fome é a prioridade absoluta que não pode esperar.
Como o senhor avalia a política do governo atual no que se refere à luta contra a fome?
Não há uma política de combate à fome hoje no Brasil. O que ainda resiste dos programas existentes, como a merenda escolar, está sendo gradualmente dilapidado, pois muitos municípios já não compram produtos frescos localmente quando deveriam ter pelo 30% da merenda.
O que há são políticas casuísticas para ganhar a eleição no próximo ano, o que explica o novo programa Auxílio Brasil ou o Programa Comida no Prato, apresentados como “novos programas” mas que não passam de maquiagens nos programas que já existiam e funcionavam mito bem, como o Bolsa Família.
Da Coluna do Jamil Chade, no UOL.