Lula concede exclusiva para Sakamoto: “Não podemos confundir Bolsonaro com o Brasil”
“Não podemos confundir Bolsonaro com o Brasil, nem alguns marginais, grileiros, uma parcela minoritária e atrasada de proprietários rurais com os brasileiros”, afirmou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em entrevista exclusiva a este colunista. “A ampla maioria dos brasileiros quer a floresta de pé.”
O foco foram temas de geopolítica e meio ambiente. O momento é pertinente, pois, nesta semana, ocorre a Assembleia Geral das Nações Unidas. O presidente Jair Bolsonaro, após um discurso na sede da ONU voltado aos seus seguidores, já voltou ao Brasil, deixando o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em quarentena em Nova York por testar positivo para covid-19.
Lula segue em primeiro nos levantamentos de intenção de voto para a eleição de 2022, à frente de Bolsonaro. Pesquisa Ipec (sucessora do Ibope), divulgada nesta quarta (22), apontou que ele marcaria 48% a 23% ou 45% a 22%, a depender do cenário, se o primeiro turno fosse hoje.
Na semana passada, o Datafolha já havia indicado que Lula venceria no segundo turno por 56% a 31%.
O ex-presidente saudou a prioridade das mudanças climáticas pela gestão Joe Biden, afirmando que o Brasil, sob seu governo, assumiu metas ambiciosas quando os Estados Unidos nem tinham assinado ainda o Protocolo de Kyoto, que visa à redução de gases que levam ao aquecimento global.
Ao destacar as medidas que o governo Joe Biden vem fazendo para recuperar a economia, o que inclui investimentos robustos, ele criticou o teto de gastos públicos do Brasil. “Lógico que isso não se sustenta, inclusive já não vale mais na prática, porque foi necessário aprovar gastos especiais diante da pandemia de covid-19. Não é possível congelar a vida de um país por 20 anos”, afirmou.
Para Lula, governos que sucederam gestões progressistas na América do Sul atuaram para “restabelecer uma ordem quase colonial das relações internacionais”. E avalia que o mundo não tem mais espaço para uma nova Guerra Fria, apesar das tensões entre a China e os EUA.
Segue a entrevista
Joe Biden colocou as mudanças climáticas como prioridade. Um novo governo do PT pretende colocar o clima no centro da agenda, considerando que significaria uma alteração da matriz industrial brasileira e não apenas investimento em etanol, hidrelétricas e combate ao desmatamento?
Lula – O Brasil, nos governos do PT, isso já em 2009, na COP-15, em Copenhagen, assumiu metas ambiciosas para redução de carbono, e reduzimos no nosso governo o desmatamento da Amazônia em 80%, quando os Estados Unidos nem tinham assinado o protocolo de Kyoto. Então eu parabenizo os EUA por rever a posição que tiveram nesse tema nas últimas décadas. Não é possível dissociar uma nova etapa de desenvolvimento do Brasil de uma agenda ambiental: recuperação de bacias hidrográficas, um agronegócio sustentável, cooperativas de reciclagem nas cidades e de preservação da floresta, como de castanheiros, seringueiros, piscicultores na Amazônia, mercado de compensação de carbono, geração de energia descentralizada e limpa.
As oportunidades para um país como o Brasil em biotecnologia, em manter a floresta de pé, em investimentos em energia solar e eólica, particularmente na região Nordeste colocam o conhecimento – pesquisa científica e tecnológica – e a preservação do meio ambiente como centrais em qualquer futuro que o país precisa voltar a construir para gerar empregos, renda e qualidade de vida para sua população.
Em seu governo, havia um conflito entre pauta ambiental e pauta de desenvolvimento. A então ministra Marina Silva enfrentava disputas com a então ministra Dilma Rousseff. Como recuperar credibilidade internacional pós-Bolsonaro na questão ambiental e manter o crescimento econômico?
Não houve conflito, houve debate. O que houve no meu governo foi a combinação da criação das maiores reservas ambientais e indígenas da história do país, a redução do desmatamento e os avanços da agenda de tratamento de resíduos e regras ambientais, com desenvolvimento econômico e inclusão social. Reduzimos o desemprego, eliminamos a fome simultaneamente ao avanço e fortalecimento dos órgãos e da agenda ambiental. Tínhamos credibilidade nas duas áreas porque falávamos sério e dialogávamos com todos. Isso não é conflito, isso é debate, democracia, onde é natural que em algumas questões apareçam discordâncias. O debate produz aperfeiçoamento.
Bolsonaro apelou ao nacionalismo para apoiar sua abordagem desastrosa sobre o meio ambiente, especialmente na Amazônia. Como você vai convencer brasileiros de que a Amazônia é do Brasil, mas não existe simplesmente para ser destruída pelos brasileiros?
Eu não preciso convencer os brasileiros disso porque é isso que os brasileiros já pensam. A ampla maioria dos brasileiros quer a floresta de pé. Não podemos confundir Bolsonaro com o Brasil, nem alguns marginais, grileiros, uma parcela minoritária e atrasada de proprietários rurais com os brasileiros.
Críticos de sua política externa afirmam que apesar de ela ter sido ativa, abraçou mais que podia, não garantindo a consolidação estrutural de conquistas. Citam a Unasul e a Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), por exemplo.
Construir, que era o que estávamos fazendo, leva tempo. Demolir é rápido. Os que vieram depois, no Brasil e nos outros países, para destruir a integração da América do Sul e a cooperação Sul-Sul só tiveram que restabelecer uma ordem quase colonial das relações internacionais. E o desastre que isso produziu está à vista. Muitos países já estão voltando a construir uma política multilateral e de integração na região que será fortalecida quando o Brasil voltar para um rumo mais humanista.
Conter o avanço da China é uma das principais preocupações de alguns ramos da direita. O senhor acredita que pode haver uma nova Guerra Fria no futuro opondo-a ao Ocidente?
Eu acho que seria um erro. O mundo não tem mais espaço para uma Guerra Fria. Precisamos de cooperação para enfrentar os problemas globais, problemas que são comuns a todos como mudanças climáticas, fome, pobreza e pandemias. O mundo perde tempo e recursos demais em conflitos.
O presidente Joe Biden está levando gastos públicos a níveis antes impensados, aumentando o papel do Estado. Por aqui, estamos fazendo o inverso. Trocamos de posição com os EUA?
O governo Biden tem adotado medidas corretas no plano doméstico para recuperar a economia, o nível de vida e poder de compra da população e o papel dos sindicatos. Muitas vezes os países desenvolvidos adotam internamente políticas e pregam contra as mesmas medidas para os países em desenvolvimento através de organismos internacionais. Um exemplo é esse teto de gastos insano [o Brasil aprovou em 2016 lei que limita o aumento e gastos públicos à inflação].
Depois do golpe de 2016, estabeleceram uma série de medidas absurdas para desmontar o Estado, as leis trabalhistas e ambientais, a educação e saúde pública no Brasil. No topo delas está essa definição que o Estado teria seus gastos congelados por 20 anos, não importa o que acontecesse. Lógico que isso não se sustenta, inclusive já não vale mais na prática, porque foi necessário aprovar gastos especiais diante da pandemia de covid-19. Não é possível congelar a vida de um país por 20 anos.
Um dos pilares das políticas de redistribuição é a taxação das grandes fortunas, mas um problema é que o capital se movimenta e constrange países isolados. Há quem defenda uma concertação contra paraísos fiscais e sonegação e um imposto mais progressivo em toda parte a fim de não termos uma “guerra fiscal internacional”. Por que isso não está sequer na pauta global?
O G7 iniciou uma discussão importante sobre impostos mínimos para empresas multinacionais. Mas o G7 é o clube das antigas sete maiores economias do mundo, que hoje nem são mais as sete maiores economias do mundo mesmo. É bem mais restrito que o G-20, que perdeu protagonismo nos últimos anos. A governança global, que já era defasada, com muitas instituições com o mesmo desenho do pós 2ª Guerra, regrediu ainda mais com o Trump.
É necessária uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, porque a geopolítica de 2021 é diferente da de 1945, quando ele foi criado, e é necessária a reformulação da divisão de votos no FMI, no Banco Mundial, entre outras instituições globais. Precisamos reanimar o G-20. Para a gente construir as soluções para os problemas comuns como a desigualdade, as mudanças climáticas, o combate à fome e contra pandemias.
Você se arrepende de sua relação anterior com grandes empresas e o poder econômico?
Não me arrependo porque a minha relação com empresas, brasileiras ou de outros países sempre foi republicana, dentro da lei e visando gerar empregos e desenvolvimento para o Brasil. Investigaram minha vida de cima abaixo, não acharam nada, tiveram que inventar uma condenação por “atos indeterminados”. Isso significa que nem o [Sergio] Moro [juiz responsável pela operação Lava Jato] conseguiu achar algo que eu fiz de errado. Se empresários cometem erros, quebram a lei, tem que pagar, perder o controle da empresa, ir para a cadeia. Mas tem que se preservar os empregos e projetos de desenvolvimento. Hoje quem tem problema de credibilidade são aqueles que derrubaram a Dilma prometendo um paraíso e destruíram o país nesse processo.
A Lava Jato e sua prisão mudaram sua visão sobre a vulnerabilidade do Brasil a interferências estrangeiras?
Não mudou. O mais grave na Lava Jato são alguns funcionários públicos brasileiros com poder de autoridade se submeterem aos interesses estrangeiros, e atuarem, fora da lei nacional inclusive, sem pensar nos danos que iam causar. Funcionários públicos com emprego garantido não se importarem em quebrar empresas destruindo milhões de empregos, em nome de uma luta política que acabou corrompendo o próprio combate à corrupção. No final a Lava Jato fechou acordo com os empresários corruptos, destruiu milhões de empregos de pessoas honestas e levou Bolsonaro ao poder.
Com quem o senhor está conversando em outras partes da América Latina? Vê o Brasil tendo um papel fundamental pós-2022?
Eu sempre mantive boas relações com amigos que fiz pelo mundo. Na América Latina, em especial, existem muitas relações profundas de solidariedade e de respeito das forças progressistas em toda a região. E essa boa relação é baseada no respeito mútuo pelas diferentes realidades de cada país, que são, por sua vez, muito diferentes da situação política na Europa.
Sobre o papel do Brasil, ele é sempre importante no mundo, pelo tamanho e posição que o Brasil ocupa de relações históricas muito fortes com a América Latina, a África e a Europa, e novas relações profundas com a Ásia, em especial a China. O Brasil é um país sem contenciosos e que sempre teve uma boa imagem no mundo. Infelizmente esse papel com Bolsonaro tem sido vergonhoso, por uma opção dele de se submeter nem aos Estados Unidos como país, mas ao [Donald] Trump e transformar o Brasil em um pária. Eu acho que o Brasil pode recuperar o papel positivo que teve no mundo na primeira década do século 21.
Como vai se reconectar com sua base e outras pessoas que apoiaram o PT nos primeiros dias, mas podem ter perdido a fé desde então?
Há uma geração mais nova que conheceu o Brasil com o PT. Não sabiam como era antes. E hoje eles estão vendo um Brasil mais parecido com o que existia antes do meu governo. Esses jovens estão entendendo melhor agora a luta da minha geração, do PT, por democracia, direitos dos trabalhadores e contra a extrema pobreza e as desigualdades sociais.
Do Blog do Sakamoto.