Kakay: “Lava Jato manipulou o Judiciário e o Ministério Público Federal”
Cego é quem fecha
os olhos e não vê nada.
Pálpebras fechadas, vejo luz. Como quem olha o sol de frente.
Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior.
Cego é quem só abre os olhos quando a si mesmo se contempla
Mia Couto
Há anos tenho observado o grupo que um colunista do Globo definiu como “gangue de Curitiba”. Fracos na ciência do Direito ampararam-se em uma forte estrutura de marketing, apoiados pela mídia. Sempre que sofriam alguma derrota, cuidavam de dominar a narrativa com um discurso de que queríamos “acabar com a Lava Jato”, que éramos “contra o combate à corrupção”.
Só eles detinham o monopólio da virtude e eram os únicos a querer o fim da corrupção. Uma narrativa canalha.
Deslocados para a estrutura do Gaeco, bateram na mesma tecla, como se os outros procuradores da República fossem levianos, condescendentes com o crime. Um desrespeito à classe. Julgavam que a Lava Jato era uma “instituição” maior que o próprio MP.
Assim também agia o juiz, quando instituiu a jurisdição universal de Curitiba, como se os demais juízes federais fossem incompetentes e lenientes. Desonesto intelectualmente.
Corri por quatro anos o Brasil, em palestras e debates, e sempre afirmei que não admitia que juiz, procurador ou delegado algum tivesse autoridade para dizer que queriam o combate à corrupção mais do que eu, mais do que qualquer outro cidadão sério. A diferença entre mim e esse bando é que eu queria o combate nos limites constitucionais. Não um combate messiânico e com claro projeto político.
Agora, desmoralizados, desnudados, ainda tentam se apegar ao discurso vazio
Embora advogue nessa operação desde o primeiro dia, com 35 clientes nela, nunca tive nenhum deles condenado por essa turma. E conseguimos vitórias importantes. Mas eles sempre tentavam manipular sem escrúpulos. Logo eles que corromperam o sistema de Justiça.
Agora, desmoralizados, desnudados, eles ainda tentam se apegar a esse discurso vazio. Desesperados. Ridículos. Viraram sombras dos heróis que acreditavam ser. Fantasmas rondando o mundo político e jurídico, sem moral para nenhum debate sério. Ainda se valem de antigos apoiadores, mas hoje todos podem ver os nervos e as vísceras expostos e dá para sentir o cheiro nauseante dos dejetos que brotam dos abusos.
Ainda assim tentam dominar a narrativa de que são os arautos da moralidade. Só que agora sussurram pelos cantos, acabrunhados, com medo. Não diria com vergonha, pois lhes faltam grandeza de alma para sentirem vergonha e fortaleza de caráter para se arrependerem dos abusos e pecados que cometeram. Como ensina Torquato Neto: É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço, ou a dignidade humana se afirmará a machadadas.
Precisamos reconhecer que a Operação Lava Jato teve méritos inquestionáveis e ajudou a desnudar um grau de corrupção que tinha de ser enfrentado. Ninguém em sã consciência prega a anulação da operação. Essa afirmação é falsa, injuriante. Onde houve investigação regular, as condenações têm de ser mantidas.
É importante entender o argumento de que os tribunais superiores mantiveram a maioria das condenações. Esses tribunais recebem os processos com as provas produzidas e, claro, partem do pressuposto da higidez das provas. É diferente analisar agora, quando a parcialidade, o conluio, a desfaçatez e o drible às normas constitucionais estão aflorados.
Ouvi de respeitado ministro a afirmação de que a nulidade da operação seria um desastre para a imagem do Supremo. Cabe ao Supremo cumprir a Constituição. Nos processos em que comprovadamente tiver ocorrido a corrupção do sistema de Justiça, com a parcialidade do juiz, com a instrumentalização do Judiciário e do Ministério Público, inclusive com a participação de advogados, o que se pretende – e isso só engrandece a Corte Superior – é o cumprimento das normas constitucionais. Se tiver de anular tal ou qual processo, o tribunal agirá como age no dia a dia. Não é a pressão midiática que vai abalar um tribunal que não tem faltado ao País.
É claro que agora, com o conhecimento mais amplo, ainda que não pleno, dos excessos, a nação espera, ávida, um reencontro com a normalidade democrática. Manter as condenações corretas e anular aquelas que forem fruto de desmando. Inclusive, investigando os que ousaram manipular os princípios fundantes da Carta Magna. É ler O Corvo, de Edgar Allan Poe: Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo? E o corvo disse: ‘Nunca mais’.
Tive a honra de dizer, na sagrada tribuna do Plenário do Supremo, quando do julgamento da presunção de inocência, que o tribunal pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum poder pode tudo. Mas é nessa Casa que deposito minha confiança no enfrentamento desses excessos que hoje são evidentes. Esse bando manipulou o Judiciário e o Ministério Público em nome de um projeto de poder. Tal projeto foi a principal peça para a eleição deste governo negacionista.
O ar que falta aos infectados por este vírus maldito é o mesmo ar que esse grupo subtraiu da democracia brasileira. Se estamos todos envoltos por uma camada turva de nuvem que nos sufoca e oprime, a origem da falta de ar é o desmesurado desejo de poder, a ambição sem limites, o jogo sujo bancado por esses bárbaros. Temos de dar um passo fora desse círculo de giz invisível que nos aprisiona. E enfrentar os que se diziam donos da verdade, uma verdade falseada, com as armas que eles negaram a todos. Vamos dar a eles o direito a um juiz imparcial, uma investigação com respeito às garantias constitucionais e um julgamento justo.
Se fôssemos usar a régua deles, eles próprios teriam pedido a prisão do bando e o juiz os teria prendido todos, inclusive a ele mesmo. Vamos respeitar os direitos deles na sua plenitude, mas vamos mostrar que o Judiciário e o Ministério Público não são massa de manobra de um grupo que corrompeu o sistema por causa de um projeto de poder político.
Recorro ao velho Pessoa, no Livro do Desassossego: Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar.
Publicado originalmente na Carta Capital.