O julgamento de Lula e a questão do poder em 10 pontos
Em artigo, membro da Campanha Lula Livre e da direção do PSOL, Valerio Arcary, fala sobre o contexto e desafios da batalha em torno da liberdade plena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
- O julgamento do Habeas Corpus de Lula na segunda turma do STF deve acontecer nos próximos noventa dias. Celso de Melo é atingido pela aposentadoria compulsória do limite de idade de 75 anos dia 1 de novembro. Há, em princípio, dois desenlaces. Ou Lula perde o HC, e não poderá ser candidato em 2022, ou Lula recupera os direitos políticos e, se quiser, passa a ser pré-candidato. Se Bolsonaro não cair até lá, e Lula podendo ser candidato se desenha um segundo turno em que o enfrentaria. O PSol apresentou Boulos em 2018, e esteve na primeira linha da campanha de Haddad. A esquerda anticapitalista luta para conquistar maior influência, mas não deve ser um obstáculo para que o PT vença eleições. O PSOL pode apresentar candidaturas no primeiro turno, assumindo o compromisso, publicamente, caso sua candidatura não vá à segunda volta, de fechar fileiras em um segundo turno. O desfecho deste julgamento remete, portanto, a uma questão central não só para o PT, mas para toda a esquerda, em seu sentido mais grave, que é o posicionamento diante da questão do poder em um possível segundo turno.
2. O julgamento consiste do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sergio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. Mas o que está em jogo, politicamente, é o destino de Lula, e ele é indivisível do futuro da Lava Jato. Se Lula ganhar a Lava-Jato sofre uma derrota irreparável. Se Sergio Moro ganhar Lula estará, politicamente, neutralizado. Estes são os termos da dramática equação. Não há neutralidade possível. E a indiferença seria imperdoável.
3. A operação Lava Jato só pode ser compreendida em contexto histórico. Há duas posições, essencialmente, sobre o seu significado na esquerda. Há a interpretação de que foi uma operação progressiva no combate à corrupção, impulsionada pelo engajamento republicano de uma nova geração de procuradores e juízes, ainda que tenha cometido excessos na exploração de delações premiadas, e transgredido os limites de procedimentos com conduções coercitivas e prisões preventivas. Quem defende esta análise secundariza o impacto da Lava Jato na ofensiva reacionária que passou pelo impeachment de Dilma Rousseff política e culminou na eleição de Bolsonaro. Esta posição tem representação minoritária no PSOL e no PCdoB e, surpreendentemente, até no próprio PT. Ela traduz o grau de adaptação política e ideológica à institucionalidade do regime democrático-eleitoral, e a pressão das camadas médias.
4. Há a interpretação de que foi uma operação política orientada, desde o início, no contexto aberto pelas mobilizações abertas em junho de 2013, e da disputa eleitoral de 2014, por uma estratégia de deslocamento do sistema de partidos consolidado na Nova República, e da perseguição da direção do PT, e criminalização de Lula. Quem defende esta interpretação sublinha que sem a LavaJato teria sido muito difícil, senão impossível, o alcance de milhões das mobilizações pelo impeachment, e o caminho aberto para a extrema direita em 2018. Esta posição é majoritária no PT, PSol e PcdB e revela um mínimo instinto de classe, e até de sobrevivência política diante do que foi o golpe institucional de 2016, o deslocamento das camadas médias para a extrema-direita e a vitória eleitoral do neofascista Bolsonaro.
5. O problema é incontornável e não haverá muito espaço para um “jeitinho”. Porque se há uma clara maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato. PSDB, MDB e DEM já foram atingidos, e continuam acossados porque Serra e Alckmin voltaram às manchetes e, dificilmente, poderão escapar de uma condenação, pelo menos de formação de caixa dois, senão enriquecimento pessoal ilícito, o que é mais grave. Acontece que não surgiu uma nova organização que possa substituí-los no sistema de partidos que fazem a representação dos interesses da classe dominante. Mas o próprio bolsonarismo assumiu um questionamento aos procuradores da LavaJato, pela iniciativa da PGR sob o comando de Aras. O que sinaliza que Bolsonaro prefere um segundo turno em 2022 contra Lula, e não contra Sergio Moro.
6. Uma esquerda que se rende antes do combate porque a luta é difícil não merece existir. Nenhuma luta política está encerrada antes que termine. O derrotismo político é a forma mais abjeta de oportunismo. Ainda que qualquer um dos cinco ministros da segunda turma possa, eventualmente, mudar os seus votos, a decisão parece estar nas mãos de Celso de Melo, porque já se sabe que Lewandowsky e Gilmar Mendes, em princípio, votarão a favor do HC e Carmem Lúcia e Edson Fachin votarão contra. Se Celso de Melo desempatar a favor do HC de Lula, é possível, que uma decisão final venha a ser transferida para o Plenário dos onze ministros, onde prevalece alguma incerteza, porque seis dos onze ministros já votaram no passado, criticamente, embora sobre temas menos controversos: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Rosa Weber, além do presidente Dias Toffoli. Incerto, duvidoso, até improvável, mas não impossível.
7. A hipótese de uma vitória político-jurídica do HC de Lula é difícil, embora não implausível. A aprovação do HC de Lula seria o desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Uma narrativa foi forjada e unificou a burguesia brasileira. A fábula de que existe um antes e um depois da Lava-Jato na luta contra a corrupção, supostamente, o maior drama nacional foi indispensável para legitimar o impeachment, e sua consequência foi a prisão de Lula, sem a qual Bolsonaro não teria sido eleito. A imensa maioria dos executivos das empreiteiras está em liberdade, em função das delações premiadas, e preservaram suas fortunas, depois de pagar as multas.
8. Tudo ainda dependerá muito da evolução da conjuntura. Os cálculos estarão influenciados, também, por apreciações sobre a evolução da situação política no médio prazo. Não é possível prever qual será contexto das eleições de 2022. Mas seria errado, também, considerar que qualquer desenlace é possível. A classe dominante está dividida, mas parece incontornável que, se Bolsonaro conseguir sobreviver até 2022, o que é incerto, provavelmente, deverá chegar ao segundo turno. Uma maioria da burguesia trabalha, portanto, para evitar que a esquerda possa chegar ao segundo turno, o que não é simples. Naquelas frações que apostam em uma candidatura de Sergio Moro ou de Dória, ou de outro, prevalece a perspectiva de que a gravidade da crise social, assim que o colchão do auxílio emergencial for suspenso, mesmo se for substituído pelo Renda Brasil, impede que a esquerda, em especial, se Lula puder ser candidato, seja excluída de um segundo turno. Portanto, liquidaria a possibilidade de uma candidatura liberal contra Bolsonaro. Porque o lugar de Moro e Alckmin, diante da polarização, seria semelhante ao de Alckmin. Logo a interdição de Lula é estratégica.
9. Se Lula não fosse ainda um candidato competitivo nas eleições de 2022, a possibilidade de recuperação plena de seus direitos políticos seria muito maior. A interdição de Lula é uma posição muito majoritária, senão unânime na classe dominante. Ela obedece, neste momento, a um cálculo de que a candidatura Lula tornaria um segundo turno contra Bolsonaro quase inevitável. Mas ninguém ignora na classe dominante que Lula é um reformista moderado. A biografia conta.
10. A CNB, corrente majoritária do PT, está dividida. Um setor ainda aposta na possibilidade, mesmo que pequena, de que o Habeas Corpus possa passar, assim como as alas à sua esquerda. Mas a maioria, que se apoia nos governadores e bancadas parlamentares, onde cresce o papel de Mercadante, hoje na presidência da Fundação Perseu Abramo, considera que é muito improvável, e vai insistir tentando posicionar Fernando Haddad para a construção da mais ampla Frente possível para o segundo turno de 2022. A questão da Frente é o segundo turno, não o primeiro.
Valério Arcary é historiador e membro da Coordenação Nacional do Resistência/PSOL.