Por Walter Sorrentino* e
Edson França**

O Brasil tem sido um laboratório inovador de escaladas autoritárias. O Estado Novo, a sucessão de golpes e intervenções militares no sistema político, a própria ditadura militar de 1964, foram fatos precursores de ondas conservadoras que se espalharam por outras partes. A razão disso, em última instância, foi a extrema desigualdade social inserta em sua formação econômico-social, a par da manutenção dos privilégios das classes dominantes. Ninguém tem 388 anos de escravidão impunemente. Aliás, também um sistema político que manteve na ilegalidade o Partido Comunista do Brasil por 62 dos 98 anos de sua fundação.

O combate à corrupção não raro foi o ponto de partida dessas inovações. Justa bandeira enfrentada com falsos métodos produziram resultados funestos para a democracia, as camadas populares e a nação. A forma mais recente disso em nosso país tem sido o lawfare, a perseguição política por meios jurídicos, atentando contra o Estado democrático de direito, o justo processo penal, os direitos fundamentais assegurados aos que são imputados. Enfim, a nova modalidade de autoritarismo invoca a judicialização da política e a partidarização do Judiciário. A propósito, um Ministro do STF teoriza sobre o Poder Moderador ser papel, no século 19, das monarquias, no 20, o do Congresso e no atual, século 21 seria o papel do Judiciário. Estrambótica formulação iliberal.

A ponta de lança dessa ofensiva é a Lava Jato, onde o juiz Sérgio Moro, à frente da vara de Justiça federal em Curitiba, amparado por parcela significativa do Ministério Público, fez de Lula seu principal alvo, para pôr fim a uma onda progressista no país, bem sucedida por sinal, atacando a esquerda em geral, o PT e comunistas em especial.

Na Itália, a Operação Mani Pulite – de que é fac-símile a Lava Jato -, terminou elegendo o governo Berlusconi, que humilhou aquela brava nação. No Brasil, a Lava Jato atentou abertamente contra o interesse nacional, a grande engenharia nacional, a Petrobrás, e elegeu o protofascista governo de Bolsonaro. Quem sangrou foi a democracia brasileira, ainda hoje aviltada pelos métodos da Operação e ameaçada abertamente por Bolsonaro.

Quando o Ministro do STF, Gilmar Mendes, em agosto de 2019, na entrevista a Reuters disse “devemos a Lula um julgamento justo”, ficou patente que o Brasil estava diante de um grave ataque à ordem democrática e ao Estado de Direito. Na ocasião, surgiam as primeiras reportagens denunciando o conluio do então juiz Sérgio Moro e o Ministério Público, veiculadas pela The Intercept Brasil e outros importantes órgãos da mídia tradicional. Alguns meses antes, dezembro de 2018, o julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula pedindo a suspeição de Moro fora suspenso, devido o pedido de vistas formulado pelo referido magistrado.

A parcialidade do juiz Sérgio Moro é uma das mais gritantes evidências da atualidade, crescentemente reconhecida pelo mundo jurídico nacional e internacional. Em artigo publicado em 2004, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, o então juiz de Curitiba avalia a Operação Mãos Limpas, iniciada em fevereiro de 1992, na Itália, e apresenta premissas cuja aplicação no Brasil garantiria um eficiente combate à corrupção: 1) progressiva deslegitimação do sistema político, a criminalização da política e dos políticos foi o caminho para esse fim; 2) independência judiciária interna e externa, logo, cabe ao juiz buscar legitimidade de suas ações diretamente com a opinião pública, não importa a Lei, importa a livre apreciação das provas e o livre convencimento do juiz, daí a importância do entendimento com a mídia para atingir as grandes massas; 3) busca a qualquer custo da colaboração do acusado, vimos na Lava Jato dura pressão, equivalente a tortura, para retirar confissão e negociar delação premiada com os investigados, réus e apenados. Não há dúvida, o heterodoxo método de Moro foi meticulosamente aplicado, sob sua coordenação e assimilado pelos procuradores de Curitiba, na Operação Lava Jato.

A sede das elites em tirar o Partido dos Trabalhadores da Presidência da República promoveu a aliança que possibilitou a hipertrofia da 13ª Vara e do MPF de Curitiba e permitiu o desatino processual e jurídico da operação que vendia a ilusão que estava combatendo a corrupção. Não se combate crime cometendo outro crime, solapando o Direito e a Constituição. O laissez faire institucional gera insegurança jurídica, arbítrio e distorções, no caso em tela produziu força tarefa soberana em relação aos cânones que asseguram o devido processo legal e as prerrogativas institucionais, chantagens sob o amparo do Estado, arbitragem segundo a conveniência do juiz, 30 mil nomes sob investigação no MPF de Curitiba, sem critério, justificativa e transparência. Foram longe demais, somente uma comissão especial de inquérito conduzida pelo Congresso Nacional poderia abrir a Caixa de Pandora e apresentar ao Brasil o estado da arte, além de propor uma profunda reforma no judiciário e no Ministério Público.

Enquanto isso, o Habeas Corpus impetrado pela defesa de Lula, um das mais primevas garantias da lei, ainda hoje aguarda o término do julgamento, passados um ano e meio, em respeito a Lula. Nele se apresenta argumentos de várias ilegalidades factuais que denotam a imparcialidade do julgador, como a condução coercitiva de Lula sem nunca ter se negado a atender qualquer diligência, grampo no escritório dos advogados que defendia Lula na ação para acessar as estratégias da defesa, interceptação e divulgação ilegal das conversas de Lula e Dilma Rousseff, ação indevida de Moro para o descumprimento da ordem de soltura de um desembargador da TRF4, vazamento da delação premiada fraudulenta de Palocci há seis dias da eleição beneficiando diretamente Bolsonaro. Foi tamanho o serviço, que foi levado imediatamente ao governo Bolsonaro na condição de super ministro na pasta da Justiça e Segurança Pública. Moro, ainda na condição de juiz, perseguia um projeto de poder.

Pior que isso: em desrespeito aberto ao artigo constitucional explícito de que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Tão escandaloso que o PCdoB impetrou ação no STF declarando a inconstitucionalidade de prender Lula, arguindo exatamente o texto constitucional. Foi uma vitória expressiva para a democracia, mas o combate segue.

Manter Lula sob as agruras do lawfare se constitui um crime lesa humanidade, no entanto, o que está em jogo ultrapassa suas condições jurídicas e políticas, não diz respeito apenas ao PT e a possibilidade de seu retorno ao Poder, mas ao futuro Nação. A mais Alta Corte do país vive uma encruzilhada histórica, ou pilota o país rumo a coesão nacional em torno da Carta Magna que nos organiza desde 1988, ou legitimará uma afronta histórica do judiciário brasileiro, segundo palavras de Pedro Serrano, liberará juízes de todas as comarcas dos cantões de todo país a reproduzir os feitos de Moro sempre que for conveniente, desestruturará a advocacia e promoverá a ditadura da toga. Parafraseando outro grande jurista, Lênio Streck, “que o STF fará agora o que todos sabemos o que eles fizeram no verão passado”.

A suspeição de Moro e um julgamento justo para Lula é um imperativo democrático, uma das bandeiras da grande política de frente ampla que se deve levar a cabo para derrotar a escalada autoritária de Bolsonaro. Ainda mais que isso, é a defesa da nação, do progresso social e dos direitos dos cidadãos. É preciso rapidamente repor o pacto democrático rompido pelo golpe do impeachment em 2016, para permitir a disputa legítima de rumos para o país. Esse parece ser o maior temor dos que abanaram a operação Lava Jato.

* Walter Sorrentino – Vice Presidente Nacional e Secretário de Relações Internacionais do PCdoB

** Edson França – Vice Presidente Nacional da UNEGRO e Secretário Adjunto Nacional de Movimentos Sociais do PCdoB