Foto: Andressa Anholete/Getty Images

540 dias após avisar que havia aceito convite do então presidente eleito Jair Bolsonaro para ser ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro anunciou semana passada que está pulando fora do cada vez mais frágil barco do governo.

Como sempre foi seu hábito, Moro não permitiu que jornalistas o confrontassem com perguntas embaraçosas. Em vez disso, fez um pronunciamento de quase 50 minutos em que, retomando a voz pausada e humilde das aparições públicas dos tempos de juiz federal, tentou vender uma espécie de Sergio Moro 3.0, mirando uma óbvia candidatura presidencial em 2022.

O Sergio Moro 3.0 apresentou seu antecessor, o ministro da Justiça, como um defensor da lei e da independência de órgãos como a Polícia Federal – a disputa pelo controle da instituição foi o motivo do pedido de demissão que disse que apresentará ainda nesta sexta-feira a Bolsonaro. Todas as três versões teriam em comum, na visão do agora presidenciável, “o respeito à lei, ao estado de direito, à impessoalidade”.

Simplesmente não é verdade. O Moro 1.0 sugeriu ao Ministério Público Federal uma nota à imprensa rebatendo o “showzinho” da defesa após um depoimento do então réu Luiz Inácio Lula da Silva num processo que cabia ao juiz federal julgar com isenção.

Já o Moro 2.0 foi um cão de guarda de Bolsonaro de fazer inveja ao filho 02, o vereador Carlos. Em fevereiro, quando veio à tona que o ministro da Justiça havia pedido a abertura de um inquérito por crime contra a honra do chefe, supostamente cometido num cartaz dum festival de punk rock, usei a Lei de Acesso à Informação para ver quantos pedidos desse tipo haviam sido feitos nos últimos 25 anos.

Os dados, enviados pela própria pasta comandada por Moro, indicam que o agora ex-ministro pediu 12 investigações do tipo em seus 16 meses incompletos no governo. É mais do que todas as investigações sobre crimes a honra pedidas pelos ministros da Justiça que serviram a Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso somadas.

Eis os números exatos:

Em português claro, Moro viu mais crimes contra a honra de Bolsonaro em 15 meses do que uma penca de seus antecessores enxergaram nos 24 anos anteriores contra quatro ex-presidentes.

Moro mandou que a PF, que ele defende que seja técnica e autônoma, investigasse não apenas uns adolescentes punks paraenses, mas também Lula, um político, por críticas ao chefe Bolsonaro. Sabemos desses dois casos porque vieram à tona. Os alvos dos demais ainda são desconhecidos, pois o conteúdo das investigações é sigiloso.

Não se viu em Moro a mesma firmeza ao tratar de casos embaraçosos para a família presidencial.

Ou Moro entendeu mal a noção de lealdade que devia ao chefe, ou não é um democrata. Dilma Rousseff foi difamada em adesivos repugnantes colados sobre o tanque de gasolina de carros no auge de sua impopularidade. Temer foi chamado de vampiro durante toda a carreira política. Lula, acusado de ter amputado o próprio dedo de propósito para não mais precisar trabalhar e de beber demais. Fernando Henrique era xingado quase que diariamente de fascista em protestos de gente inflamada – e, hoje percebemos, também mal informada sobre o real significado do termo. Não consta que nenhuma dessas agressões tenha gerado inquéritos por “crime contra a honra”.

Não se viu em Moro a mesma firmeza ao tratar de casos embaraçosos para a família presidencial. Ele deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, amigo dos Bolsonaro, envolvido nas rachadinhas de Flavio, o filho 01, e possivelmente envolvido no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Nóbrega foi executado em seguida pela polícia baiana, levando ao túmulo seus segredos sobre a família Bolsonaro. Moro nunca comentou o caso.

Moro também mandou que sua Polícia Federal investigasse o porteiro do condomínio em que vivem Jair e Carlos Bolsonaro por ter dito a autoridades cariocas que Élcio Queiroz, motorista do carro usado para matar Marielle e Anderson, foi a casa do presidente no dia do crime. A investigação determinada pelo então ministro teve como alvo exclusivo o porteiro, e não todo o caso, que permanece nebuloso até hoje. Moro agiu para preservar o chefe.

Hoje, em seu depoimento de despedida, Moro falou que Bolsonaro queria no comando da PF alguém a quem “pudesse ligar, colher informações, relatórios de inteligência”. “E realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informações”, asseverou, com ares de Rui Barbosa.

Também não é papel dela perseguir críticos do presidente da República. Nem é papel de um juiz federal, como ele já foi, coordenar o trabalho dos acusadores ou oferecer informalmente aos procuradores provas contra um réu. Moro fez e mandou fazer tudo isso.

É tentador celebrar Moro por seu desembarque do bolsonarismo, que enfraquece o mais ordinário e perigoso governo que o país já teve. Mas é um erro: ele ajudou a eleger e foi durante 16 meses o fiador de um presidente que flerta abertamente com um autogolpe.

A advogada Rosângela Wolff Moro, a quem o agora ex-ministro confiou o papel de porta-voz deste os tempos da magistratura, certa vez disse ver o marido e Bolsonaro como uma coisa só. A história dificilmente deixará de fazer o mesmo.

Publicado originalmente no The Intercept Brasil.