Coronavírus: maior impacto sobre os mais pobres exige ação coletiva e do Estado
No artigo “Coronavírus: as doenças dos ricos matam os pobres – de vírus ou de fome”, Alexandre Haubrich analisa o impacto das crises sobre os mais pobres.
“Tem que garantir hoje porque não sabemos quando vai ter jogo de novo”, disse uma guardadora de carro no entorno da Arena do Grêmio, minutos antes do Grenal da Libertadores.
As grandes crises trazem à tona problemas da sociedade que a aparente normalidade cotidiana muitas vezes maquia. Esses problemas aparecem nos efeitos e nas “soluções” para as crises. No caso da pandemia de coronavírus, uma questão que grita é a insegurança e a precariedade da vida dos trabalhadores. Me refiro especificamente ao Brasil e, mais especificamente, ao período pós 2015, em um quadro agravado pela reforma trabalhista de 2017. Como fica a situação dos trabalhadores que seguem obrigados a ir aos locais de trabalho e precisam, além disso, utilizar o transporte coletivo? E, pior: como fica a situação dos 40 milhões de trabalhadores informais do Brasil?
O cancelamento dos eventos esportivos, por exemplo. Quantos trabalhadores e trabalhadoras têm seus parcos ganhos vinculados ao entorno dos grandes jogos? Donos e funcionários de bares, guardadores de carro, funcionários contratados por empreitada pelos estádios, vendedores ambulantes… a lista é grande. Outro exemplo são os trabalhadores de aplicativos de transporte. Eles só recebem se trabalham, e carregam em seus veículos dezenas de pessoas todos os dias, em um pequeno espaço. Que segurança o mundo do trabalho oferece para esses trabalhadores? Que segurança o Estado garante para eles?
Propriedade social e proteção
A ideia de “propriedade social” nasce exatamente com esse sentido, de proteção dos que, por não possuírem propriedades privadas vigorosas, necessitam compartilhar segurança social. O Estado é o organizador dessa propriedade social, a não ser que seja redirecionado, por governantes e pelo capital que de fato manda no governo, para esvaziar os serviços públicos, os investimentos nas pessoas, e majorar o despejo de recursos públicos para potencializar o enriquecimento dos que já são ricos. Nas mãos dos ultraliberais, como Paulo Guedes, o Estado não morre: ele é reorientado para favorecer ainda mais os mais ricos e poderosos. Esvazia-se a propriedade social e o próprio Estado torna-se, cada vez mais, propriedade privada. E, em crises como a atual, não apoia os setores da população que mais precisam de apoio.
O coronavírus espalhou-se pelo mundo graças aos cidadãos que viajam ao exterior, e certamente não são os mais pobres, os trabalhadores precários, informais ou desempregados, os que o fazem. É uma doença espalhada involuntariamente por quem tem dinheiro para viajar. Mas os mais ricos e alguns setores de trabalhadores resguardados por alguns direitos conseguem algum nível de proteção: podem evitar o transporte público utilizando carros particulares, em alguns casos podem ficar em casa, acessam médicos particulares, etc. E os que são obrigados a continuar frequentando os locais de trabalho mesmo em uma situação de crise sanitária, precisando, para isso, utilizar o transporte coletivo? E os que não têm condições de pagar um médico particular?
Para esses é que são necessárias redes de proteção social. Eles precisam ter direito a ausentar-se do trabalho, precisam ter direito a médicos da família, precisam ter garantia de seguros se não puderem realizar seus trabalhos informais.
A busca pelo lucro mata
Há outros fatores que expõe essa diferença de classe no caso do coronavírus. O álcool gel, por exemplo. Juntamente com a lavagem correta e reiterada das mãos e com evitar aglomerações, o uso de álcool gel tem sido apontado pelas autoridades sanitárias internacionais e locais como uma grande arma para combater a contaminação e propagação do coronavírus. Mas, no “livre mercado”, o preço do álcool gel disparou em todo o Brasil – em Porto Alegre, por exemplo, os tubos portáteis, de 30g, estão custando R$ 10 em farmácias e supermercados. Como os mais pobres vão comprar? Não vão. E aí aumentam a chance de serem contaminados e contaminarem os outros, porque seguirão obrigados a utilizar o transporte público para deslocar-se ao trabalho, ou a dirigir seus veículos em aplicativos.
Em Cuba, a estrutura de saúde da família é pujante. Na Argentina, o governo congelou o preço do álcool gel. São estruturas e medidas necessárias para combater uma crise dessas proporções. No Brasil, até agora, o governo anunciou pequenas ajudas às empresas, e nada mais. Isso em meio a um agressivo desmonte das políticas públicas desde o golpe, agravado pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e Paulo Guedes. A Emenda Constitucional 95, de Temer, já retirou R$ 20 bilhões do SUS, conforme estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde. O fim do Mais Médicos, com Bolsonaro, potencializou o desmonte da saúde pública, tão necessária para enfrentar a atual situação.
Morrer de quê?
Sem o apoio coletivo, os mais pobres não sobrevivem às crises, quaisquer que sejam elas. Em uma situação limite como a atual, ganham o direito à livre escolha, tão defendido pelos ultraliberais de terno, como Paulo Guedes: podem morrer de vírus ou de fome. Que liberdade é essa? É o oposto da civilização e da democracia. A vida em sociedade pode ser segura e livre de fato, mas apenas se houver um senso comum comunitário e políticas públicas que reflitam esse ideário. Para chegar-se ao direito à vida e à saúde é necessário passar-se pelos direitos do trabalho.
Publicado originalmente no Brasil de Fato RS.