por Luis Nassif

A aparência de Lula é bem mais jovem e descansada do que no período pré-prisão. A voz está bastante rouca, mas o rosto está rosado e ele parece estar chegando de um spa e não de um longo período trancafiado em uma sala de 15 m², principalmente usando o indefectível chapéu Panamá. Mesmo rouco, é nítida a vontade de Lula em falar, explicar, relembrar.

Rebate quando alguém fala na inevitabilidade do fascismo da classe média. Diz que nem todos professam o discurso do ódio.

– Esse sentimento foi plantado pela Globo, não é natural do povo brasileiro.

Alguém sugere que seria relevante retomar o diálogo com a Globo. Lula refuga.

– Sempre conversei com a Globo e nunca adiantou.

Conta que em 2013 procurou João Roberto Marinho para falar sobre a campanha de descrédito da Copa, encetada pela própria Globo. Mostrou a ele que a Copa era da Globo, que não havia sentido em desmoralizar o eemtp antes mesmo que começasse. Não houve jeito. Conversou com o Itau, com patrocinadores, mas a Globo persistiu na campanha de descrédito, dando continuidade à convocação de manifestações de rua.

Tem mágoas, sim. Mágoas óbvias contra a Globo e contra a Lava Jato. Mas, no plano pessoal, a mágoa está focada em Fernando Henrique Cardoso. Relembra o início da redemocratização, quando foi até FHC garantir o apoio do PT às suas primeiras eleições.

Conta como impediu que o PT endossasse o Dossiê Cayman, uma armação de Paulo Maluf preparada pelos irmãos Gilberto Miranda e Egberto Baptista, visando influenciar as eleições de 1998. Era uma suposta conta no paraíso fiscal de Grand Cayman, de suposta titularidade de Fernando Henrique, Sérgio Motta, José Serra e Mário Covas.

Lula foi procurado por Lafayette Coutinho, emissário de Maluf, tentando convencê-lo a encampar as denúncias. O país entrava em período eleitoral, com Mário Covas disputando a reeleição para governador de São Paulo com Maluf, e FHC disputando a reeleição contra o próprio Lula.

Não aceitou, porque o pacote atingia diretamente Mário Covas, a quem Lula devotava sentimentos de gratidão. Depois, pela falta de verossimilhança. Lula levou o pacote a Márcio Thomaz Bastos, que desaconselhou qualquer ato de endosso à armação.

Eram tempos em que PT e PSDB ensaiavam pactos políticos contra o que era a direita da época, representada por Maluf. Lula procurou Covas que, no segundo turno, foi apoiado pela candidata do PT Marta Suplicy contra o próprio Maluf.

– E sabe o que o Fernando Henrique fez? Disse que fazia questão que eu aparecesse no Palácio , se eu não aparecesse no Palácio, ele iria na sede do PT para me buscar. Fui lá e a única coisa que ele queria era saber o que mais havia no tal dossiê contra Covas e os demais.

A conversa evolui para o último livro das memórias de FHC, na qual ele, o ex-presidente não poupa ninguém, nem amigos, nem aliados.

O pacto nacional

Aí se entra no tema inevitável do grande pacto nacional. Lula deixa entrever que o grande acordo nacional está no seu horizonte. Mas não consegue entender as críticas quanto à polarização.

– Ninguém faz política sem polarização, explica ele. Não significa radicalização. Significa ter uma posição clara em oposição a alguém.

Não tem ilusões quanto à sua candidatura em 2018. Diz que a Igreja Católica é a organização mais antiga da história e tem a sabedoria de não aceitar nenhum candidato a Papa com mais de 77 anos. Mas não quer abrir mão de influir nas próximas eleições.

Aproveita e cutuca Fernando Haddad. Não o quer candidato a prefeito de São Paulo nas próximas eleições.

– Quem teve 45 milhões de votos não pode voltar a ser candidato a prefeito. Tem que cultivar o eleitorado.

Lembra-se de sua primeira eleição, na qual foi derrotado, mas conquistou 1,5 milhão de votos. Encontrou-se com Fidel Castro que o estimulou:

– Você não foi derrotado. Você recebeu a maior soma de votos que um operário já recebeu na história. Tem que continuar.

Repete o mesmo conselho para Haddad. E, agora, não se está falando de 1,5 milhão de votos, mas em 45 milhões.

– Você tem que correr o país, encontrar com as pessoas, consolidar sua liderança.

Foi o mesmo conselho que deu a Gleise Hoffman, quando foi reconduzida à presidência do PT. Seu estilo é soltar os aliados mais promissores, observar sua evolução e apostar naqueles que mostrarem maior potencial.

Sabe que o PT tem que sair da bolha. Não pode ficar falando só para os seus. E elogia a postura do governador maranhense Flávio Dino, seu trabalho, a objetividade do seu discurso, o fato de falar para fora da bolha.

Alguém volta às eleições para a prefeitura de São Paulo e indaga de Marta Suplicy. Diz ele que divergências são naturais, mas a história não pode ser apagada. E que Marta fez a mais bem avaliada administração petista da história da cidade de São Paulo. Há uma discussão sobre quem teria sido o pai dos Centros Culturais.

– Não importa, o que importa é que politicamente foi a administração de Marta quem alavancou politicamente o projeto.

Alguém se recorda do momento em que Marta e Dilma se tornaram definitivamente inimigas. Pouco antes da indicação de Dilma para sua sucessora, Lula foi procurado por Marta.

– Lula, conheço bem as mulheres. A candidatura de Dilma vai liquidar com você e o PT.

Mas Dilma era uma competentíssima Ministra-Chefe da Casa Civil. Tinha seus problemas, especialmente com os Ministros que tinham acesso direto a Lula. Mas Lula fazia a mediação, chamava os Ministros, ajudava a superar as mágoas com sua Ministra.

Hoje em dia, a grande dificuldade do pacto é a ausência de um interlocutor do outro lado. Aproveita para cutucar FHC pelo fato de que o máximo que conseguiu foi apostar em um apresentador de TV.

Lembra-se que, em outros tempos, o Senado tinha Paulo Brossard, Marcos Freire, Jarbas Passarinho e compara com o Senado de hoje. Recorda-se dos primeiros pactos que fez com a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), tendo na outra ponta Luiz Eulálio de Bueno Vidigal. E, agora, um deserto amplo de figuras públicas.

E entra no ponto central: a falta de figuras referenciais do lado da direita. Com quem negociar? Alguém menciona sugestão do próprio GGN, de que caberia a Lula empoderar o interlocutor. Mas quem seria ele?

Surge o nome de Tasso Jereissatti, Lula se recorda da boa convivência com ele em outros tempos, depois de um período em que Tasso assumiu um discurso bastante autoritário. Na conversa, surge muito o nome do senador Oto Alencar, da Bahia.

Apesar da flexibilidade para novos pactos, Lula ainda tem resistências contra hipocrisias da política. Como o movimento “direitos já”, um evento político ocorrido na PUC-SP, que visava juntar centro-esquerda e centro-direita e para o qual Gleise Hoffmann foi convidada.

– Falei para a Gleise levar a Dilma e dizer: vocês tiraram o mandato de uma presidente legitimamente eleita, através de um golpe. Antes de continuar, peçam desculpas a ela.

O impeachment

Grande parte da conversa é sobre o impeachment e sua decisão de não concorrer em 2014, quando ficou claro a corrosão na popularidade de Dilma Rousseff. Marta chegou a organizar uma reunião em sua casa com parte do empresariado paulista pedindo para que Lula se candidatasse. Mas Lula ficou firme na posição de que a decisão cabia a Dilma que tinha o direito de postular sua reeleição.

Atribui o isolamento de Dilma especialmente ao marqueteiro João Santana. Alguém se lembra de uma reunião no Palácio, quando as pesquisas apontavam um índice de ótimo-bom de apenas 8% para Dilma. Na reunião, o prognóstico terrível:

– Com 8%, corre até o risco de impeachment.

Ainda havia possibilidade de Lula assumir a candidatura, mas nenhum movimento aconteceu da parte de Dilma, dona incontestável do direito de se candidatar. Santana tratava de minimizar os riscos, de enxergar perspectivas que ninguém via, explorando um ponto muito vulnerável nos mandatários: a solidão do poder, que faz com que as pessoas criem resistências contra quem traz problemas, e se abram para quem só bajula.

Depois da eleição, a corrida para impedir a corrosão do governo.

Foi procurado por Dilma dois meses após as eleições, para se aconselhar sobre o novo mandato. Sua primeira sugestão foi para a Economia. Precisava alguém de peso e confiável. Sugeriu que procurasse Luiz Trabucco, presidente do Bradesco, e Henrique Meirelles, que ainda estava preservado pelo mercado. Trabuco consultou o presidente do Conselho de Administração do banco, Lázaro Brandão, que apresentou a sugestão fatal, Joaquim Levy.

A conversa fica muito nisso, de encontrar razões pontuais aqui e acolá para o impeachment. A descontração do papo impede avaliações mais aprofundadas sobre o conjunto de fatores que colocou em xeque a democracia brasileira.

Lula se recorda das fantasias do PT, achando que a candidatura de Arlindo Chinaglia derrotaria Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. Bem que tentou emplacar Jacques Wagner na articulação política do governo. Dilma apresentou objeções.

– Será que ele tem experiência política suficiente?

E Lula rebateu que Wagner tinha mais experiência política que ele, Lula, e Dilma somados. Um político que derrota ACM na Bahia, se reeleger, faz seu sucessor, sempre no primeiro turno, teria que demonstrar mais o quê?

Mas a decisão foi colocar na articulação Ideli Salvatti, uma política de Santa Catarina de biografia respeitável, mas de escassa experiência em articulação política.

Depois, o rompimento final, quando o PT dispunha de três votos para impedir a abertura de um processo contra Eduardo Cunha na Comissão de Ética da Câmara. O aviso era explícito: se o PT não o apoiasse, ele abriria o processo de impeachment. O PT não apoiou, o processo contra Cunha foi aberto, para regozijo do presidente do PT, Rui Falcão, que chegou a publicar um Twitter comemorando. Dilma comemorou. No dia seguinte, Cunha autorizava o processo do impeachment.

É difícil saber o que seria o governo com as concessões a Cunha. Mas, por três votos, o PT entregou um projeto de país, que, em todo caso, já fazia água.

Lula vai se recordando da enorme dificuldade que encontrou quando tentou deter a avalanche do impeachment. Exemplo de lealdade, para ele, é o ex-presidente José Sarney, que, além de leal, é educado e sabe fazer política. Lembra-se de um político colocando as diferenças entre Sarney e FHC.

– Sarney ouvia a gente, me dizia esse político. Já Fernando Henrique bota o dedo no nosso nariz e querer dar ordens.

E aí se entra no tema das relações pessoais como peça central na montagem de acordos políticos. Quando teve início o processo de impeachment e Lula se pôs a campo para tentar detê-lo, o Congresso era um pote de mágoas, com políticos de todas as extrações que, em algum momento, se sentiram ofendidos pelo estilo duro de Dilma. Recorda-se dele ligando para diversos políticos, cada qual com três ou quatro votos essenciais para parar o impeachment. E todos eles com posição fechada contra Dilma por conta de mágoas, devido a episódios menores, mas onde a desatenção e o estilo direto de Dilma criaram resistências profundas.

O assunto envereda para as relações com empresários. Lula diz que nenhum outro presidente ouviu tanto os empresários quanto ele. Levava empresários em cada viagem internacional, chamava ao Palácio para conversar, acatava conselhos. E, agora, se queixa da solidão.

– Abílio Diniz me ligava diariamente e me ajudou muitas vezes. Foi só sair do governo para não receber mais um telefonema dele.

Alguém menciona que Abílio é isso mesmo: sempre esteve a favor de todos os presidentes, mas enquanto presidentes.

A conversa termina um pouco nostálgica. Olhando para frente, Lula coloca na raiz de todos os problemas o profundo preconceito brasileiro, herança da escravidão.

– Quando comprei o apartamento em que moro até hoje, era líder sindical e o apartamento era cobertura. E os vizinhos ficavam incomodados por ter um sindicalista morando em cima deles.

O símbolo máximo desse preconceito foi a atitude da juíza Gabriela Hard, da Lava Jato.

– A pessoa faz um curso de direito que a família proporciona. Não precisa ser brilhante. Aí participa de um concurso. Quando vê na sua frente um trabalhador semi-analfabeto, que chega onde cheguei, o preconceito aparece na hora.

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