Não pode passar em branco: “Moro foi um tsunami na história e na economia do Brasil”
No artigo “”A lambança de Sérgio Moro vai ficar impune?”, Camilo Vanucchi cobra punições rigorosas para Moro após sentença final do STF
Tem uma expressão muito comum no Brasil, historicamente empregada pela turma do “deixa disso”, que prescreve a importância de “virar a página”. Virar a página seria uma espécie de receita de superação, uma “bola pra frente” institucional, prevista nos manuais da cordialidade e da convivência pacífica, quase sempre imposta de cima para baixo a fim de camuflar um cala-boca opressor sob a aparência de uma cooperação positiva, voluntária, generosa. Os três séculos de escravidão foram uma barbaridade? Viremos a página. A ditadura militar perseguiu, prendeu, torturou, exilou e matou? Viremos a página. Um pedreiro desapareceu, uma vereadora foi executada a tiros, um músico teve seu carro atingido por mais de oitenta tiros, uma jovem de 19 anos foi estuprada por dois policiais dentro de uma viatura? Viremos as páginas. E assim, de página em página, perpetuam-se os crimes, repetem-se abusos, passam-se as boiadas.
Foi do juiz espanhol Baltasar Garzón, conhecido por ter decretado a prisão de Augusto Pinochet em 1999, que ouvi, pela primeira vez, uma oportuna revisão do combalido axioma: “Para virar a página, é preciso ler a página antes”. Ler a página significa voltar ao frontispício da obra para conhecê-la desde o início e em sua completude. Reconhecer os crimes e os erros praticados, atribuir responsabilidades em vez de esconder intenções. Vale para os crimes do Brasil Colônia. Vale para os crimes da ditadura. Vale para os crimes da democracia.
É mais ou menos esse sentimento e essa proposição que todos nós deveríamos ter em relação ao ex-juiz Sérgio Moro. Seu legado, apenas parcialmente conhecido, assume as feições de uma lambança completa. O resultado de sua passagem pela primeira instância de Curitiba é este cenário de caos e destruição em que nos encontramos hoje. Muitos não o enxergam – e é lamentável que não o enxerguem.
A partir do momento em que o pleno do Supremo Tribunal Federal confirmou, por um placar de 7 x 4 votos, a parcialidade do ex-juiz de Curitiba ao longo de todo o processo que julgou e condenou o ex-presidente Lula, é inevitável o imperativo de ler as páginas antes de virá-las. Foram 580 dias de uma prisão decretada ao arrepio da lei. Uma condenação feita sob medida, às vésperas da eleição presidencial de 2018, para tirar Lula da disputa. Foram 580 dias de uma prisão fundamentada num julgamento prévio, numa escolha deliberada de provas, coordenada nas sombras dos aplicativos de mensagens por juiz e promotores, escancarada ou anunciada subliminarmente em capas de revista que retratavam Moro e Lula como adversários num ringue: uma imagem absolutamente inaceitável quando se entende que um juiz não é nem pode ser adversário de réu, mas o julgador isento a quem compete ouvir e deliberar. Foram mais de quatro anos de uma perseguição implacável que roubou do ex-presidente a esposa, a liberdade, o direito de velar o irmão e a garantia fundamental de disputar uma eleição.
Cresci ouvindo música em fitas k7. Quando queria repetir uma faixa, era preciso rebobinar a fita, ou seja, fazê-la girar de trás para frente, numa velocidade mais alta, até que a fita voltasse ao início ou ao ponto desejado. Hoje, se fôssemos rebobinar a fita da Lava Jato e de tudo o que aconteceu na política brasileira nos últimos seis anos, ficaríamos cara a cara com uma dúzia de episódios dantescos, nauseantes, que nos diminuíram como pessoas, como sociedade e como nação. O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pelo suposto crime de pedalada fiscal, uma manobra contábil, é um deles. A criminalização da esquerda é outro. E nenhum deles tão claro e tão letal quanto a eleição de um genocida, que nunca escondeu sua índole autoritária, e que tratou de anunciar Moro para seu ministério poucos dias após a eleição.
Sérgio Moro, hoje em exílio voluntário em Washington, foi um tsunami na história e na economia do Brasil. Nossa trajetória poderia ter sido outra. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer sua parcialidade e decretar Lula Livre não é suficiente. Não deveria ser.