Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

Difícil reconhecer qual foi a maior virada do dia de hoje no Supremo Tribunal Federal. Terá sido o novo voto da ministra Cármen Lúcia, que agora reconheceu a parcialidade de Sergio Moro contra Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá? Ou a própria reputação judicial de Sergio Moro, que parece ter sido abandonado até mesmo pelo relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin?

Se ainda fizer uso do aplicativo de mensagens pelo qual se comunicava com Deltan Dellagnol, Moro poderia alterar seu status, ao menos por ora, para “incompetente e suspeito”. É este seu saldo nos processos contra Lula, alvo maior da Lava Jato, no STF: no habeas corpus monocraticamente concedido por Fachin no início do mês, sua incompetência foi reconhecida para todos os casos relativos a Lula, por falta de relação direta com desvios na Petrobras; e no habeas corpus julgado hoje, sua ausência de imparcialidade foi atestada pelo tribunal no caso do triplex do Guarujá.

A jurisprudência de um tribunal de cúpula, como o STF, tem ao menos duas funções. Do ponto de vista dos cidadãos, ela serve para defender a integridade de seus direitos à luz das leis e da Constituição. Já do ponto de vista do sistema jurídico, ela serve para orientar a aplicação consistente das normas jurídicas a casos concretos, fixando entendimentos claros que sejam replicáveis no futuro. Mesmo quando ministros têm opiniões divergentes sobre a matéria em julgamento, deve haver um entendimento compartilhado entre eles sobre o sentido do julgar: identificar os fatos relevantes e aplicar-lhes o direito vigente, de preferência com deferência a precedentes e opiniões doutrinárias predominantes. É esse o jogo da aplicação do direito por um tribunal.

Às vezes, porém, magistrados jogam um outro jogo, em que a aplicação técnica do direito cede lugar a uma disputa entre facções judiciais. No julgamento de hoje, o ministro Gilmar Mendes chamou-o de “jogo da esperteza”. Nele, os direitos das partes e a boa aplicação do direito são vítimas colaterais de uma busca obstinada dos ministros para que suas posições pessoais prevaleçam, a qualquer custo. No jogo da esperteza, os procedimentos decisórios e os direitos das partes só não são mais prejudicados do que a reputação do próprio tribunal. A sorte dos direitos civis e políticos de Lula, que teve hoje um decisivo capítulo no tribunal, foi em grande parte decidida em um jogo da esperteza.

O último capítulo desse jogo começou a se desenrolar em 8 de março passado. Naquele dia, Fachin surpreendeu a todos com a concessão de ofício de um habeas corpus para reconhecer a incompetência da vara de Curitiba em relação aos processos contra Lula, que não tinham relação relevante com desvios na Petrobras.

A perplexidade com a decisão só se desfez quando se descobriu que, no dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes devolveria a julgamento o habeas corpus que se concluiu hoje. Como Fachin antevia o resultado que hoje se confirmou, sua decisão de véspera, que determinava a perda de objeto de todas as ações apresentadas ao STF pela defesa de Lula, visava a impedir que o tribunal se manifestasse sobre a quebra de imparcialidade por Sergio Moro. Prevaleceu, porém, a posição do ministro Gilmar Mendes, pela continuidade do julgamento. O argumento decisivo para tanto veio do ministro Kassio Nunes Marques: se a decisão de Fachin seria apreciada pelo plenário, não fazia sentido considerar o habeas corpus da suspeição de Moro prejudicado desde logo. A esperteza de Fachin não prevaleceu.

O julgamento não se concluiu em 9 de março porque o ministro Nunes, o mesmo que dera o argumento definitivo em favor do prosseguimento da ação, pediu vista e não votou. Na ocasião, o placar estava em dois a dois e seu voto parecia ser aquele que definiria a disputa. Logo suspeitou-se de que o pedido de vista havia sido também um lance do ministro no jogo da esperteza, para adiar a decisão de uma causa sobre a qual os interesses políticos eram muitos – inclusive os do presidente que o indicou ao tribunal, Jair Bolsonaro, que acabara de afirmar, com ares de uma certeza que não deveria ser sua para dar, que Lula não seria candidato em 2022. Mas o pedido não era esdrúxulo em si: o caso fora levado a julgamento de surpresa e não era impróprio que o ministro que acabara de chegar ao tribunal pedisse algum tempo para estudá-lo melhor.

Nunes voltou com o voto que proferiu hoje à tarde na Segunda Turma, denegando o habeas corpus pedido pela defesa de Lula e deixando de reconhecer a suspeição de Sergio Moro, mas por argumentos processuais. Invocou preclusão, isto é, um impedimento ao reconhecimento do pedido naquele momento, pelo STF, porque a discussão já teria se esgotado em instâncias inferiores. Coube ao ministro Ricardo Lewandowski, em uma breve manifestação posterior, colocar as coisas em seus devidos termos: em processos criminais, a suspeição do juiz é causa de nulidade absoluta e não está sujeita a preclusão. De fato, é insustentável que se reconheça que um réu foi condenado por juiz suspeito, ou pessoalmente corrompido de outras maneiras, mas que a condenação deve ser mantida porque agora já é tarde demais para falar disso.

O ministro poderia alegar, porém, que havia algo de novo no caso, não apreciado pelas instâncias inferiores. Seria o caso das mensagens da Vaza Jato. Nesta matéria, porém, seu voto foi incisivamente crítico à utilização do material da operação Spoofing. Enfatizou a origem ilícita do material, levantou dúvida sobre a integridade de seu conteúdo, imaginou um rico “mercado de provas ilícitas”, onde hackers seriam contratados por réus para violar a privacidade de juízes e procuradores a fim de garimpar provas de suspeição que os beneficiassem. Mostrou-se à vontade para ironizar o ministro Gilmar Mendes, que famosamente disse que não se combatem crimes cometendo crimes, para dizer que igualmente não se combate o comportamento impróprio de autoridades violando seu sigilo de comunicações.

O ministro Nunes Marques concluiu seu voto sem nada dizer sobre a conduta substantiva de Sergio Moro ou dos procuradores de Curitiba, embora reconhecendo que ele, como a maior parte do Brasil, acreditava que as mensagens reveladas pela Vaza Jato “muito provavelmente correspondiam à verdade dos fatos”. A constatação gerou perplexidade: que juiz é capaz de, para manter condenação a uma pena criminal longa, conscientemente ignorar fatos nos quais ele acredita, e que atestam a evidente injustiça na condução do processo? O ministro deu ensejo à evocação de Rui Barbosa feita por Gilmar Mendes pouco depois: “o bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Gilmar Mendes pediu a palavra “para aprimorar a dialética” do voto na sequência. Na prática, votou novamente. Visivelmente contrariado pela sugestão de que seu voto se baseava em provas ilícitas, partiu para cima de Nunes Marques, que havia se dito um juiz garantista. “Isso não é garantismo nem aqui, nem no Piauí”. A ofensa só não foi pior do que o remendo posterior: após interpelação do ministro agredido, lembrou dos amigos piauienses.

Gilmar Mendes sugeriu que o voto de Nunes Marques foi desonesto ao fazer parecer que sua decisão havia se baseado nas mensagens da Operação Spoofing. “Não precisamos de hackers aqui”. Os atos de Moro eram mais do que suficientes: o monitoramento de conversas dos advogados de Lula, os vazamentos seletivos de interceptações telefônicas para causar prejuízo político ao ex-presidente e ao PT, a liberação desavergonhada da delação de Antônio Palocci às vésperas das eleições em que Lula não pode concorrer, vencidas pelo político para quem o juiz que o tirou do páreo foi imediatamente trabalhar. Embora ninguém negasse o impacto subjetivo das mensagens sobre seu espírito, Lewandowski foi o único ministro que declaradamente as considerou em seu voto.

A segunda fala de Gilmar Mendes, “para aprimorar a dialética”, foi mais longa do que o próprio voto de Nunes Marques. Provavelmente, ele jogava o jogo da esperteza: ou não queria deixar que as opiniões do ministro novato ocupassem sozinhas a sessão, ou fazia acenos que confortassem a ministra Cármen Lúcia, que já havia votado, em sua eventual mudança de voto – algo que não é proibido, mas também não é comum.

Gilmar rebateu todos os argumentos de Nunes Marques. Aqui lhe foi conveniente a jurisprudência inconsistente do STF, onde sempre é possível achar qualquer coisa para amparar uma pretensão. Mendes relembrou habeas corpus concedidos em situações análogas, no que foi acompanhado por Lewandowski e Cármen Lúcia. Deleitou-se com as analogias ao processo penal totalitário da União Soviética, em óbvia ironia ao apelido de Sergio Moro nas mensagens dos procuradores: “Russo”.

Por trás de argumentos inflamados que frequentemente resvalaram em ofensas, Mendes tinha um argumento que era difícil de rebater: como era possível que alguém contemplasse todos os fatos praticados por Moro, hoje vistos em retrospectiva – os vazamentos seletivos, o monitoramento de advogados, o uso escancarado de poderes judiciais para causar prejuízo político a Lula, a consideração de uma carreira política junto a Bolsonaro –, como era possível contemplá-los, enfim, e ainda assim enxergar a condução de um processo penal justo?

Cármen Lúcia não enxergou. Com algum empenho para se desvencilhar de seu voto anterior sem se amparar nas mensagens da Vaza Jato, argumentou que o passar do tempo desde a impetração original do habeas corpus, em 2018, havia dado “especificidade” e “coloração” aos fatos trazidos pela defesa de Lula, e votou pela concessão do habeas corpus, selando o placar de 3 a 2 em favor do ex-presidente.

Qual o cenário provável para o futuro jurídico de Lula e para suas chances de candidatura em 2022? O processo de hoje anulou apenas o caso do triplex do Guarujá, mas os mesmos fundamentos devem valer para a outra condenação de Lula, no caso do sítio de Atibaia. Mesmo que essa outra sentença tenha sido dada pela juíza Gabriela Hardt, todos os atos anteriores praticados por Moro devem ser anulados — o primeiro dos quais é a decisão de recebimento da denúncia. Com isso, todo o processo desmorona.

A anulação das condenações deve implicar a prescrição dos crimes pelos quais Lula foi acusado nesses dois processos: em razão de sua idade, os prazos prescricionais caem pela metade. Fora isso, há ainda a discussão sobre a incompetência, remetida por Fachin ao plenário. Nos demais processos que ele responde, não houve sequer condenação em primeira instância. Por qualquer via, é improvável que uma pendência criminal impeça uma candidatura de Lula em 2022.

Ironicamente, o grande “réu” da Lava Jato a partir de agora passa a ser Sergio Moro. Não no sentido próprio, pois ele não é criminalmente acusado, mas seguramente no sentido simbólico: de agora em diante, toda a dinâmica dos casos possivelmente girará em torno de acusações de parcialidade contra ele, levadas ao STF pelos demais condenados na 13ª Vara Federal de Curitiba.

Da Revista Piauí.