Pegasus, ou Pégaso, o cavalo alado, é um personagem da mitologia grega que representa força e liberdade. Domado pelo herói Perseu, foi fundamental na derrota dos poderosos titãs. Conhecendo ou não essa história, os procuradores que integraram a força-tarefa da Lava-Jato enxergaram no software de espionagem Pegasus, desenvolvido em Israel, mais uma ferramenta para tentar neutralizar um dos titãs da política brasileira.

Segundo uma petição enviada na segunda-feira, 26, ao Supremo Tribunal Federal pela defesa do ex-presidente Lula, os procuradores chegaram a negociar a aquisição do spyware para monitorar de forma ilegal o ex-presidente e outros envolvidos nas investigações comandadas desde Curitiba.

A negociação entre a Lava-Jato e a empresa israelense NSO Group foi revelada por novos arquivos da Operação Spoofing obtidos pelos advogados Cristiano Zanin e Valeska Martins, responsáveis pela defesa de Lula. Embora a compra não tenha sido concluída, a petição enviada ao ministro Ricardo Lewandowski afirma que a conduta dos procuradores evidenciou “a existência de atos processuais clandestinos e ilegais, além da realização de cooperação internacional informal – fora dos canais oficiais – por membros da extinta força-tarefa com autoridades estrangeiras”.

::: Saiba mais – Caso Pegasus: Lava Jato negociou compra de programa espião de Israel :::

Os advogados de Lula ressaltam que o Pegasus é um sofisticado mecanismo utilizado para espionagem em todo o mundo “por regimes autoritários e para atacar a democracia”. Segundo reportagem publicada neste mês pelo britânico The Guardian, milhares de números de telefone foram espionados diretamente pelo spyware israelense em pelo menos 50 países. Entre as vítimas estão políticos oposicionistas, autoridades públicas, advogados, jornalistas, empresários, acadêmicos e ativistas.

A aquisição do equipamento foi imposta a um delator, diz a defesa do ex-presidente

Para Cristiano Zanin, os novos trechos de diálogos extraídos da Operação Spoofing com autorização do STF indicam duas ilegalidades: “Primeiro, a ideia da criação de um bunker em um órgão do Ministério Público Federal para coletar e armazenar dados relativos a pessoas, o que fere garantias fundamentais e colide com o papel da própria instituição”, diz. Outra ilegalidade, enumera o advogado a CartaCapital, é a compra, feita “de forma escamoteada”, de equipamentos para a extração de dados. “A compra foi imposta a um delator que teve que pagar uma parte da ‘multa’ fixada com equipamentos para o MPF.”

O MPF afirma que a compra do Pegasus nunca foi concretizada. “Jamais houve aquisição ou uso clandestino de qualquer sistema pela força-tarefa da Lava-Jato”. Em nota, a instituição diz que cabe ao seu setor administrativo a aquisição de qualquer sistema computacional: “Os procuradores da Lava-Jato não integravam o setor. A força-tarefa nem tinha atribuição para isso”. O MPF diz ainda que todos os sistemas passam por “procedimentos formais de aquisição para garantir o atendimento das exigências legais”.

Zanin, no entanto, afirma que houve, sim, a participação direta da força-tarefa nas negociações. “Houve claramente uma negociação estabelecida para a compra do Pegasus, estando os procuradores cientes desde o início de que era um spyware altamente invasivo e com capacidade de abrir remotamente microfones e câmeras de celulares dos alvos.”

De fato, a transcrição dos diálogos não deixa dúvidas quanto à negociação estabelecida entre a força-tarefa e a empresa israelense que, inclusive, não teria sido a primeira: “Pessoal, a FT-RJ se reuniu hoje com uma outra empresa de Israel, com solução tecnológica super avançada para investigações”, diz uma mensagem postada em 31 de janeiro de 2018 pelo procurador Julio Noronha e relatada pela Spoofing. Ele continua: “A solução invade celulares em tempo real (permite ver a localização, etc.). Eles disseram que ficaram impressionados com a solução, coisa de outro mundo”.

Os juristas Lênio Streck, Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos, do Grupo Prerrogativas, questionam: “o que mais a força-tarefa comandada por Dallagnol fez? Isso vai ficar assim? E sobre as ilegalidades, agora já sedimentadas por julgamentos do STF, como serão reparadas? Quem pagará?” (Leia o artigo na íntegra – clique aqui)

A negociação direta com os israelenses fica explícita em outras mensagens postadas por Noronha: “De toda forma, o representante da empresa estará aqui em CWB, e marcamos para vir aqui. Quem puder participar da reunião, será ótimo!”, diz o procurador no chat Filhos de Januário, utilizado pelos integrantes da força-tarefa. Noronha demonstra que no grupo havia ciência quanto à ilegalidade de uma eventual utilização do Pegasus: “Há problemas, como o custo, e óbices jurídicos a todas as funcionalidades (ex.: abrir o microfone para ouvir em tempo real)”, diz.

O advogado Eugênio Aragão, que foi ministro da Justiça de Dilma Rousseff, afirma que os procuradores “não têm, no rol de suas atribuições constitucionais, a operação de equipamentos conspirativos”. A sucessão de ilegalidades reveladas pela Spoofing, diz, torna os integrantes da Lava-Jato individualmente passíveis de punição. Para ele, é preciso “passar a limpo” o MPF. “Uma CPI para apurar os contornos e o alcance dos abusos é urgente, com consequente revisão do status normativo do Ministério Público. O Brasil não aguenta um órgão que recorrentemente sabota o estado democrático de Direito”.

Especialista em Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica, o advogado Lenio Streck também aponta a participação direta dos procuradores nas negociações de compra do Pegasus. “Os diálogos mostram que integrantes da força-tarefa queriam adquirir um aparelho de espionagem, arapongagem, sem controle de ninguém, a não ser deles. Queriam montar um bunker. O Estado agindo na clandestinidade. Muito ruim. Claro que isso tem de ser investigado.” Para ele, o aspecto simbólico torna o caso ainda mais grave. “São agentes do Estado conspirando contra as garantias constitucionais. Devem ter se inspirado no Grande Irmão, do livro 1984, de Orwell. Isso é totalitarismo.”

Para Aragão, o novo episódio é mais um em que ocorreu a busca de colaboração por parte dos procuradores, ainda que de forma indireta, junto a governos de outros países. Isso já havia ficado caracterizado com as reuniões clandestinas com procuradores da Suíça e do governo dos Estados Unidos, também reveladas pela Spoofing: “A força-tarefa não poderia buscar, sem qualquer supervisão, contato com o exterior para sugerir que pudessem adquirir esses equipamentos fora dos parâmetros normativos de atuação institucional e de respeito à competência exclusiva do Executivo sobre as relações internacionais do Brasil”.

Publicado originalmente na CartaCapital.