Foto: Julia Rodrigues

Advogada especializada em Direito Internacional, Valeska Teixeira Zanin Martins é, ao lado do marido Cristiano Zanin, responsável pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos processos da Lava Jato, que tiveram início em 2016 e acabam de ganhar reviravolta no STF. Descrita por colegas como discreta, firme e técnica, Valeska fala pela primeira vez sobre as vitórias jurídicas à Marie Claire, em entrevista em que detalha sua trajetória pessoal e profissional até assumir o caso que movimenta as eleições de 2022

“Lembra quando te falei sobre adrenalina? Isso, para nós, é vida”, me disse Valeska Teixeira Zanin Martins, minutos depois da ministra Cármen Lúcia mudar seu voto no julgamento mais midiático de 2021 – pelo menos até aqui. Com a mudança, realizada na tarde de ontem, Cármen formou maioria na Segunda Turma do STF para declarar que o ex-juiz federal Sergio Moro agiu com parcialidade ao condenar o ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá. Em 2018, quando o julgamento teve início, o entendimento de Cármen havia sido contra a suspeição de Moro. Ao final da sessão de ontem, o relator do caso, Gilmar Mendes, chegou a chorar ao citar o trabalho da dupla de advogados: “Acho que falo em nome do Tribunal ao reconhecer o brilhante trabalho da defesa. Sem dúvida nenhuma nós vimos um advogado [Cristiano acompanhava a sessão de forma virtual] que não se cansou de trazer questões ao Tribunal, muitas vezes até sendo censurado, incompreendido. Mas ele tinha, vamos reconhecer, uma causa muito difícil e muito personalizada […]. Acho que faço na pessoa do Dr. Zanin uma justa homenagem à advocacia brasileira”, afirmou.

“Estou muito emocionada. Não tenho palavras, já chorei”, falou Valeska à Marie Claire instantes após o julgamento. “É como um jogo de tabuleiro: as peças foram se movimentando, às vezes de forma mais sutil, mas sempre se mexendo. Para nós, advogados do caso, é uma grande vitória, mas acho que o mais importante foi o reencontro do judiciário com o rule of law [Estado de Direito].” No momento da decisão, Valeska e Cristiano estavam com os três filhos – um de onze anos, e gêmeos de sete – em seu sítio no interior do Estado de São Paulo. Durante a entrevista, fomos interrompidas algumas vezes por um dos caçulas, que estava em seu colo. “Ele assistiu ao julgamento comigo. Não entendeu nada, mas vibrou junto”, conta. “O que houve hoje foi o reconhecimento de que nosso cliente não teve um julgamento justo, independente e imparcial. Ao final, falamos com ele por telefone, que disse ‘obrigado pela ousadia e pela certeza de que estavam fazendo a coisa correta’.” Para Valeska, “o trabalho que fazem é garantir que, se Lula quiser concorrer, ele possa. Vai depender da conjuntura, mas acho que hoje há intenção de voltar à vida política”, finaliza.

Esse, no entanto, não foi meu primeiro contato com a advogada. Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a imagem de uma mulher loira, jovem e bastante séria chamou minha atenção por aparecer algumas vezes no noticiário televisivo brasileiro. Era Valeska, que naquele dia recebeu a notícia de uma vitória jurídica: a de que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, decidiu que a 13ª Vara Federal de Curitiba, que tinha o ex-juiz Sergio Moro como titular, era incompetente para processá-lo e julgá-lo nos casos da Lava Jato que envolviam o tríplex do Guarujá, o sítio de Atibaia e outras duas ações envolvendo o Instituto Lula.

A decisão, que pegou de surpresa a quase todos, inclusive o próprio Lula, anulou todas as condenações do ex-presidente, que voltou a ter – ao menos por ora – direitos políticos, o que na prática faz com que ele possa concorrer às eleições presidenciais em 2022. Levou dois dias para que Lula viesse a público em pronunciamento feito no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. A sequência de acontecimentos, por si só, já seria capaz de agitar o noticiário nacional, mas o fato de ter ocorrido durante a pior fase da pandemia de covid-19 no Brasil, e em meio a brigas políticas sobre a gestão do governo na área da saúde, deixou o time de Marie Claire, acostumado a perfilar mulheres no poder, intrigado: quem é a mulher responsável pela defesa do ex-presidente e por que ainda sabemos pouco sobre ela?

Em nosso primeiro contato telefônico, via WhatsApp, ocorrido no dia seguinte ao pronunciamento do ex-presidente, Valeska contou que está em isolamento social com a família há exato um ano – ao lado do marido, Cristiano, e os filhos pequenos –, porém trabalhando em tempo integral. “Já me acostumei a trabalhar remotamente. Na realidade, só não me acostumo com as aulas online para os três [risos]”, disse sobre os meninos. Com Cristiano, Valeska divide não só a função de auxiliar as crianças no ensino remoto, como também a própria defesa de Lula, entre diversos outros casos – os dois são sócios na TZM Advogados. Embora atuem juntos no processo, Cristiano acabou se tornando mais conhecido e uma espécie de porta-voz da defesa de Lula, enquanto Valeska atua nos bastidores. Entre eles, no entanto, não há hierarquia. “Nós dois somos um time”, conta ela. “Cristiano me trata como sua parceira pessoal e profissional. Quando é uma matéria de direito penal ou processual que está em pauta, prefiro que ele fale. O que me movimenta é a estratégia, é o que gosto de fazer. Enquanto há uma parte do time falando, tem de haver a outra parte se programando para montar outras peças do xadrez.”

Cristiano, por sua vez, reitera o papel complementar que a companheira tem na atuação do caso. “Sou formado na área processual, forense. Já Valeska trabalhava com mercado de capitais, Direito Internacional. Temos a mesma intensidade [de trabalho], porém com visões que se complementam”, conta. “Nunca desenvolvemos um ambiente de competição.” Os dois, inclusive, escreveram juntos o livro Lawfare: Uma Introdução (2019; 150 págs., Editora Contracorrente, R$ 36), ao lado do também advogado Rafael Valim, em que apresentam a tese que embasou a defesa do ex-presidente: a de que aconteceu uma guerra jurídica com contexto político. Em suma, defendem que houve o uso estratégico do Direito para deslegitimar ou prejudicar um “inimigo”. Segundo a teoria que defendem, o inimigo seria Lula, e os algozes, os promotores e juízes da 13ª Vara de Curitiba.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

Nascida em São Paulo, Valeska passou a primeira infância em São Bernardo do Campo, antes de voltar a morar com a família na capital. Embora não se recorde desse período, ele é significativo pois remete ao início da amizade entre o pai dela, o advogado Roberto Teixeira, e o ex-presidente Lula, na época líder do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e de Diadema. Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto tem uma relação próxima o suficiente com Lula a ponto de ser padrinho de seu filho, além de ter atuado por muitos anos como seu advogado. “Eu e meu pai temos a mesma profissão e, hoje, somos sócios no mesmo escritório. Temos muito em comum, mas talvez o que mais nos torne parecidos é o fato de sermos uma fortaleza, de não desistirmos nunca de nossos casos”, afirma.

Uma advogada criminalista que atuou na defesa de um réu da Operação Lava Jato, e que topou falar à Marie Claire sob a condição de anonimato conta que, por algum tempo, a presença de Valeska e de Cristiano na defesa do ex-presidente foi uma incógnita. “De certa forma, era compreensível porque há uma relação próxima entre eles, de amizade, o Roberto é compadre do Lula. Mas o que não fechava para muitos criminalistas é que a especialidade deles [de Valeska e de Cristiano] não era justamente a criminal”, fala. “Um caso complexo como o de Lula não ter um escritório de advocacia criminal em sua defesa era questionado.” Um ex-assessor do Instituto Lula, também ouvido pela reportagem sob anonimato, corrobora a dúvida entre os colegas. “Havia um ciúmes, que posso chamar até de ‘fogo amigo’. Como se [eles] não fossem as pessoas ideais para um caso de tamanha magnitude”, conta. “Mas as decisões tomadas pelo STF neste mês de março mostraram o contrário.” Ideia que o principal interessado no caso, o ex-presidente Lula, concorda. Sem esconder a ligação pessoal que tem com Valeska, disse à Marie Claire: “Aquela menina que conheci ganhou meu respeito e admiração pela brilhante mulher e extraordinária advogada que se tornou.”

As vitórias de Valeska e Cristiano no caso se deram em uma conjuntura bem diferente de quando entraram com o processo de suspeição contra o ex-juiz Sergio Moro em 2018, logo após a vitória do presidente Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais. A crise da pandemia do novo coronavírus no Brasil, que tem média de mortes diárias superior a três mil pessoas, aliada à queda de popularidade de Bolsonaro confirmada pelo Datafolha na semana passada, tornariam o cenário político, de certa forma, mais favorável a Lula. Essa tese, apoiada por parte da opinião pública e da imprensa, no entanto, é contestada pelo advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, um dos fundadores do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), e que atuou na defesa da Odebretch na Lava Jato. “Quem estranha uma decisão como a de Fachin nesse momento é porque não conseguiu acompanhar tudo que aconteceu na Lava Jato. Muita coisa aconteceu nos últimos três anos”, afirma. “Mas a incompetência da 13ª Vara de Curitiba vem sendo dita pelo Supremo há muito tempo, não é uma tese jurídica nova. Existe um curso natural dos processos, demora para chegar aos tribunais superiores, ao Supremo. Na minha opinião, não tem relação com o timing da pandemia. Aconteceu agora porque foi o momento que o habeas corpus levou para ser julgado.” Ainda segundo Augusto, que nunca trabalhou diretamente com Valeska ou Cristiano, “ambos fizeram um trabalho bem feito, e prova disso são as várias vitórias processuais que tiveram.”

VISITA À ONU

Uma característica que chama atenção em Valeska, à primeira vista, é o uso de vários termos em inglês enquanto conversa. Resultado de seus anos de estudo na Graded School, tradicional escola americana em São Paulo, além da especialização em Direito Internacional (ela é formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, de onde diz sentir saudades do período universitário). A fluência lhe tornou uma espécie de porta-voz informal da defesa de Lula no âmbito internacional, em especial na denúncia ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que, em 2018, pediu ao Brasil que garantisse os direitos políticos do ex-presidente para concorrer às eleições. A deliberação do Comitê foi encaminhada do Judiciário do país que, embora seja signatário da Convenção de Direitos Humanos da ONU, não é legalmente obrigado a seguir recomendações do órgão. Lula foi preso e não concorreu, mas Valeska ganhou visibilidade internacional. “Esse é um caso muito importante para os direitos humanos no Brasil. Foi o primeiro brasileiro que foi à ONU denunciar violações”, lembra Valeska.

A estratégia inédita é mais uma das “peças de xadrez” que Valeska menciona diversas vezes enquanto conversamos. “O que me motiva é justamente essa adrenalina”, conta ela. “A Valeska gosta muito da profissão, assim como eu”, diz Cristiano. “A advocacia que a gente pratica é bem específica, são casos de alta complexidade, decisivos. A gente gosta muito de planejar, executar e, claro, ver resultados. Essa maneira parecida de trabalhar é algo que nos fortalece, inclusive a relação pessoal, que é de longa data.” Ambos se conheceram quando trabalhavam para um mesmo cliente, mas em escritórios diferentes. Logo começaram a namorar e, um anos depois, se casaram. Deixaram seus respectivos empregos e foram trabalhar juntos no escritório que hoje são sócios. Tiveram o primeiro filho quase dez anos depois e, há sete, vieram os gêmeos. Neste período, atuaram juntos em outros casos, alguns emblemáticos, como na condenação da General Eletric (GE) a indenizar a Transbrasil, em virtude de pedido de falência formulado com base em nota promissória já paga; no bloqueio da venda da petroquímica Quattor para a Brasken, e Petrobrás, após pedido de acionistas minoritários; ou ainda no impedimento da venda da cervejaria Schincariol para a japonesa Kirin, em 2011. Um ex-funcionário do escritório, também ouvido sob a condição de anonimato, afirmou que, no dia-a-dia, é ela que acaba exercendo a função de chefe. “Valeska gosta de administrar o todo, os outros advogados. É ela quem ‘cuida da lojinha’”, afirma.

Neste um ano de pandemia, o casal de advogados permaneceu quase o tempo todo no trabalho remoto, em distanciamento social, dividindo-se entre as tarefas profissionais e escolares com os meninos. Enquanto as vitórias no trabalho se somaram, Valeska e Cristiano passaram por um revés pessoal. No início de fevereiro, a Segunda Turma do STF negou o recurso apresentado por procuradores da força-tarefa da Lava Jato para não compartilhar as mensagens da Operação Spoofing com a defesa de Lula. Com a decisão, os advogados tiveram acesso a todas as trocas de mensagens hackeadas entre procuradores e Sergio Moro, no episódio conhecido como “Vaza Jato”, inicialmente exposto pelo site The Intercept Brasil, em 2020. Um pouco antes da decisão, no entanto, um dos gêmeos teve um sério problema de saúde: foi diagnosticado com um tumor no cérebro e precisou passar por uma cirurgia delicada. “Foi um susto bem grande. Ele começou a perder os movimentos do lado direito, porque o tumor estava no lado esquerdo. Em um mês, a fala se deteriorou, ele deixou de sentir o pé e a mão”, diz Valeska, emocionada. “Quando finalmente veio o diagnóstico, em cinco dias uma equipe maravilhosa do Einstein [hospital de São Paulo] conseguiu operá-lo e ele ficou sem nenhuma sequela. Graças a Deus era um tumor benigno, foi um milagre. Hoje está superbem, feliz, um guerreiro. Estou muito orgulhosa dele.” Foi o menino quem acompanhou, do colo da mãe, parte da entrevista à Marie Claire logo após o julgamento da suspeição de Moro no STF.

Não foi a primeira vez, no entanto, que Valeska precisou enfrentar uma crise familiar em meio ao caso Lula. Em 2016, um pouco antes do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a família decidiu fazer uma festa de aniversário para os filhos com os amiguinhos da escola. Mas, na noite anterior, a diretora da instituição ligou para avisar que haveria uma manifestação contra Valeska e Cristiano: um grupo de mães divulgou o endereço e planejou ir ao evento com roupas pretas, como se estivessem de luto. “Elas diziam que defensores de bandidos não tinham lugar junto às crianças da ‘elite’”, lembra Valeska. “Foi extremamente agressivo.” A advogada Gabriela Bandeira de Melo, professora de Direito Constitucional da PUC-SP, amiga de Valeska há mais de vinte anos e madrinha de casamento dela e de Cristiano, diz que o episódio foi traumático. “Essa polarização acaba resvalando nas crianças, não tem jeito. Foi muito ruim para elas”, conta. “Valeska sempre quis ser mãe e, como toda mulher que trabalha e tem destaque ao assumir um caso high profile como o de Lula, acaba passando por situações violentas como essa.” Também para preservar os garotos, a advogada prefere ficar fora dos holofotes e são raras as vezes em que concede entrevistas. Ao final de nossa conversa, diz que aprendeu a lidar com episódios como este. “Sabe, não fico me apegando a esse tipo de coisa”, diz. “Eu e o Cris preservamos bastante os meninos. Mas não dá pra ficarmos acuados.”

Da Revista Marie Claire.