Um dos mais fascinantes sintomas do funcionamento de nossa sociedade é a ideologia jurídica. É fascinante observar como por meio da linguagem cotidiana o direito e suas instituições são retratados como parâmetros de racionalidade, de imparcialidade ou vistos como manifestações da “justiça” ou do “bem comum”.

Não é de se estranhar a força desse imaginário, uma vez que a neutralidade das leis, a imparcialidade do Judiciário e o respeito aos contratos e à propriedade são condições fundamentais para a reprodução econômica. A “normalização” da vida social, com seus conflitos e contradições passa pela constituição de um senso comum impregnado pela ideologia jurídica. O fato de alguém afirmar que irá à “Justiça” e não ao setor especializado da burocracia estatal denominado Judiciário é um indicativo de como atua o direito em sua dimensão ideológica.

Todavia, os consensos jurídicos em torno da ordem social podem ser abalados em períodos de crise. Rasga-se a fantasia da neutralidade das leis e sua dimensão de classe é desnudada. Desfaz-se a miragem da imparcialidade dos juízes e a posição política do Judiciário em defesa da ordem e a favor de interesses corporativos já não consegue se apresentar com os disfarces de sempre. Nesse cenário caótico, nem os mais convictos ideólogos do direito conseguem se equilibrar no palavrório dos tratados jurídicos.

As contradições entre o discurso jurídico e a realidade social estão muito bem retratadas no caso do ex-presidente Lula. Diante do julgamento no Supremo Tribunal Federal da legalidade na condução dos processos criminais movidos contra o ex-presidente, houve quem dissesse que a possível anulação das condenações não poderia fazer de Lula inocente. Isso porque o Supremo Tribunal Federal não está analisando se o ex-presidente é culpado ou não dos crimes a ele imputados, mas tão somente questões de caráter técnico-processual. Ou seja, para alguns, Lula não poderia ser “inocentado” mesmo se as condenações forem anuladas.

Essa argumentação pode ser reveladora ao menos de duas formas. Na primeira, ao demonstrar o próprio modo de ser do sistema de Justiça criminal que é, como aponta há décadas a criminologia crítica, um instrumento político comumente usado contra adversários políticos ou contra aqueles que contestem a ordem social vigente.

Um dos efeitos do processo seria deixar uma marca de indignidade sobre o processado, que nunca mais possa ser retirada. Na segunda, a revelação está na fragilidade do discurso jurídico que, especialmente em períodos de crise, mal consegue sustentar elementos básicos da sua origem liberal.

É o caso da presunção de inocência. Apesar de sua previsão constitucional e sua consagração na teoria política há mais de dois séculos, há quem insista que um réu precisa ser “inocentado”. Ora, aprende-se ainda nos primórdios da faculdade de direito que o réu não precisa ser inocentado, pois sua inocência é “presumida” e é disso que se trata o princípio da presunção de inocência. Ou seja: o processo penal não se presta a comprovar a inocência de alguém.

No processo ocorre a avaliação de provas que, ao final e na forma da lei, autorizem a retirada ou concluam pela manutenção da condição jurídica de inocência que já pertencia ao réu. Assim, se o juiz é suspeito ou incompetente estamos diante de ilegalidades que inutilizam o processo, e o réu, por consequência, permanece inocente.

Só uma crise sem precedentes e a decadência política de um país de tradição antidemocrática podem explicar a facilidade com que o princípio da presunção de inocência é desconsiderado até mesmo no esfumaçado campo dos discursos ideológicos. O tratamento que sempre se deu à presunção de inocência no Brasil ajuda-nos a entender o porquê Roberto Schwarz considera que o liberalismo é aqui mais uma das “ideias fora de lugar”.