Com pesar, comunicamos o falecimento de Gabriel Rodrigues dos Santos, jovem de 19, militante apaixonado e cheio de energia transformadora. Em muitos momentos, Gabriel esteve nas ruas encampando a bandeira Lula Livre e, por mais de uma vez, visitou a Vigília Lula Livre, em frente a Polícia Federal em Curitiba, onde estava preso injustamente aquele que era sua inspiração de vida, o ex-presidente Lula.

Gabriel faleceu na manhã desta quarta-feira, 10, na UTI do Incoor, em decorrência de complicações de uma infecção que acometia seus pulmões já há três meses. De origem pobre, Gabriel vendia balas e amendoins nos trens de Carapicuíba e encontrou na militância política um sentido para seguir sobrevivendo e transformando sua realidade.

Deixamos aqui como memória e homenagem esta narrativa sobre Gabriel publicada em junho de 2017 nos Jornalistas Livres, por Anderson Bahia. Gabriel Rodrigues dos Santos. Presente!

No dia 13 de dezembro de 2016, a Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) vivia mais um dia tenso. Dezenas de estudantes secundaristas lotavam a galeria da Casa. Na mesa diretora, deputados liam o relatório da CPI da Merenda, que seria votado pelos demais membros do parlamento logo em seguida. À medida que a leitura transcorria, seu conteúdo revelava que políticos citados em supostos desvios da merenda escolar não seriam enquadrados dessa forma no documento. Os estudantes se exaltaram e os policiais militares entraram em ação. Novas cenas de repressão se iniciavam.

“Começamos a gritar palavra de ordem e a xingar alguns deputados. Foi quando os policiais partiram em nossa direção e um deles foi tentar levar o Anderson”, narra Gabriel Rodrigues dos Santos, 16 anos, estudante do 8° ano da Escola Estadual Dona Maria Alice Crissiuma Mesquita, situada em Carapicuíba, grande São Paulo. O outro estudante que, segundo ele, seria detido pela Polícia Militar chama-se Anderson Ribeiro, diretor da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES).

O que aconteceu em seguida é lembrado com detalhes pelo jovem. “Assim que um policial segurou o Anderson para levá-lo, eu reagi, puxando-o para tentar evitar. Outro policial me prendeu pelos braços e saiu me arrastando também”. As cenas seguintes são relatos de desproporcionalidade e uso excessivo de força. Gabriel – um garoto magro medindo 1,70 metro – foi enforcado pelo policial. Seu rosto já se avermelhara e lágrimas escorriam-lhe pelos olhos. “Ouvia gente gritando para me soltarem porque eu poderia morrer”. Arrastado até um elevador com mais policiais presentes, recebeu três socos na barriga e na costela, além de dois fortes tapas no rosto.

Gabriel foi levado para um Departamento Policial. Em sua companhia foram a deputada estadual Márcia Lia (PT) e um advogado da assessoria da sambista e também deputada estadual Leci Brandão (PCdoB). Na delegacia, policiais chegaram a fazer menção de que seu destino seria a Fundação Casa, um Centro de Atendimento Socioeducativo, mas a intervenção da deputada impediu. O estudante foi liberado após a chegada de sua mãe, Ana Rodrigues dos Santos, 43 anos.

Esses fatos encerraram um episódio marcante da política em São Paulo e que teve repercussão nacional. Ainda no primeiro semestre daquele ano, em 3 de maio, dezenas de estudantes ocuparam o plenário da ALESP. Movidos pela indignação com manchetes de jornais e telejornais, dando conta da existência de um esquema de fraude e desvio da merenda escolar na rede pública estadual de ensino, entraram ali dispostos a só saírem depois de os deputados se comprometerem a aprovar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o caso.

As manchetes fartamente reproduzidas em todo país tratavam de um desdobramento da Operação Alba Branca, deflagrada em 19 de janeiro de 2016 pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Estadual de São Paulo. De acordo com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Ribeirão Preto, entre 2013 e 2015 as fraudes chegaram a R$ 7 milhões. Entre os investigados estava Fernando Capez, deputado pelo PSDB e presidente do parlamento estadual.

Os estudantes cumpriram o que prometeram. Três dias depois, na tarde do dia 6 de maio, deixaram o local e, na parte externa, comemoraram a conquista das 10 assinaturas que ainda faltavam para a criação da CPI da Merenda Escolar.

Foi um feito e tanto.

Nos quatro anos anteriores, nada menos que 26 CPIs foram enterradas na ALESP. A base de apoio do governador Geraldo Alckmin (PSDB), com ampla maioria, sempre atuou de forma rápida para evitar que qualquer investigação sobre os atos do governo fosse aberta.

Mas essa foi difícil conter. As principais emissoras de televisão, rádios e jornais cobriram amplamente os três dias de ocupação. Isso levou a uma grande mobilização de entidades da sociedade civil organizada, de artistas e intelectuais em solidariedade aos estudantes. Ainda na primeira noite, o cantor Chico César, conhecido pela música “Mama África” e dezenas de outros sucessos, compareceu ao local. Ele ouviu o relato dos jovens, manifestou seu apoio e cantou várias músicas para eles. Instantes após a sua saída, o Padre Júlio Lancellotti, responsável pela Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, chegou com pães e chocolate quente feitos por moradores de rua sob sua coordenação. A doação era o gesto de apoio daquela pastoral à manifestação das meninas e meninos. Num breve e empolgante discurso, ele destacou que “em tempos de injustiça, praticar a desobediência civil é uma virtude”.

O relatório aprovado naquele 13 de dezembro listou 20 nomes envolvidos no caso. Nenhum de político com mandato. Os nomes de Luiz Roberto dos Santos, o “Moita”, ex-chefe de gabinete da Casa Civil na gestão de Alckmin, além de Jéter Rodrigues e José Merivaldo dos Santos, ex-assessores de Fernando Capez, foram os que mais se aproximaram daqueles com poder de decisão na administração pública.

Apesar da blindagem política que os mantém impunes, os principais suspeitos de liderar o esquema saíram com a reputação manchada. O engajamento de uma geração de estudantes secundaristas, que já tinham chamado a atenção do país inteiro após ocuparem mais de 200 escolas no final de 2015 contra a proposta de “reorganização” escolar que poderia levar ao fechamento de dezenas delas, era responsável por isso.

Vendedor de amendoins

É meio dia. Na estação Barra Funda do metro de São Paulo, milhares de pessoas trafegam freneticamente. Integrada com outras duas linhas da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e mais um terminal rodoviário, cotidianamente centenas de milhares de pessoas circulam pelo local. Todo dia, nesse horário, Gabriel também chega ali. Vindo da periférica Carapicuíba, cidade onde nasceu e reside até hoje, anda sempre com uma mochila carregada de doces. Até às 17h, alterna entre as linhas 8 e 9 vendendo amendoins, chicletes e balas. Antes de anoitecer, retorna para a casa e em seguida vai à escola.

Negro, com um bigode sutil de adolescente cujos hormônios começam a moldar um corpo de adulto, Gabriel é o sexto filho entre oito irmãos. Seus pais são separados há seis anos. Ele mora no bairro Vila Lourdes com a mãe e quatro irmãos: Gleice, 21 anos, Juliana (17) e os gêmeos João Victor e João Augusto (15). Liliane, 22, mudou-se para Curitiba há cinco anos e desde então não recebe notícias dela. Cláudio, 28, está preso há 4 anos, acusado de participação em tráfico de drogas. O mais velho, Eduardo, morreu em 2011 na linha 8 da CPTM. Deslocava-se para o trabalho de manhã cedo quando caiu na linha do trem, após ser empurrado pela multidão que todo dia aglomera-se nas estações. Até hoje a família não recebeu a indenização que requisitou à Justiça. Sobre o pai, só sabe que mora na capital. Não tem contato com desde que ele e sua mãe se separaram.

Todo dia o jovem que desafiou deputados e contribuiu para difundir na sociedade o escândalo sobre o desvio da merenda escolar de diversas crianças e adolescentes iguais a ele repete essa rotina. De 2014 para cá, entretanto, as atividades políticas passaram a alterar esse script. Atraído pela identidade construída pelo Partido dos Trabalhadores de atuação em favor das classes populares, reforçada pela imagem e atuação do ex-presidente Lula, Gabriel se envolveu na campanha de reeleição da então presidente Dilma Rousseff. Vinha duas vezes por semana para a capital e também nos fins de semana. Se informava sobre as atividades que a militância realizaria e, sem conhecer ninguém, se somava a elas. Distribuía panfletos em grandes pontos de concentração de pessoas (estações de metrô e avenidas principais), participava de caminhadas, carreatas e etc.

Contra o impeachment de Dilma.

Esse envolvimento iniciou-se em sua própria cidade, na eleição municipal de 2008. Ainda criança, pregou adesivos da campanha do então candidato a prefeito pelo PT Sérgio Ribeiro, que seria eleito e reeleito em 2012. Na reeleição de Ribeiro, dividiu seu tempo com vindas a São Paulo para participar também das atividades de campanha de Fernando Haddad, que numa arrancada surpreendente sairia de 7% das intenções de voto para se tornar prefeito da maior cidade da América do Sul. Gabriel driblava sua mãe dizendo que “ia bem ali”. Só retornava cinco ou seis horas depois.

“Nem sei como começou direito. Em 2008, era criança ainda e participava por participar. Mas em 2010 (na primeira eleição de Dilma), vi toda aquela discussão contra ela, por ser mulher e apoiada por Lula. Isso despertou minha atenção porque já tinha noção dessa ligação do Lula com as pessoas mais pobres e ser contra ele me incomodava por isso”, explica.

Após a eleição que reelegeu Dilma, o campo político que foi derrotado nas urnas, liderado pelo candidato Aécio Neves (PSDB), iniciou uma série de ações para reverter o resultado eleitoral. Todo esse processo culminaria no impeachment da presidente eleita no final de agosto de 2016. Mas entre uma data e outra, a polarização política na opinião pública e nas redes sociais ganhou as ruas.

No ano de 2015, um total de sete grandes manifestações foram realizadas em todo país. Três convocadas por organizações como Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE) e Movimentos dos Sem Terra (MST) – em março, agosto e dezembro -, e quatro (em março, abril, agosto e dezembro) chamadas por organizações criadas para fazer oposição aos governos de Lula e Dilma, como “Vem Pra Rua”, “Revoltados On Line” e Movimento Brasil Livre (MBL). Gabriel participou de todas aquelas que os movimentos sociais realizaram.

Em 2016, as atividades realizadas contra o impeachment de Dilma e a favor da democracia multiplicaram-se exponencialmente. A condução coercitiva do ex-presidente Lula, em 4 de março daquele ano, foi recebida por muitos como um excesso do juiz Sergio Moro, no bojo da operação “Lava Jato”, conduzida a partir de Curitiba. Nos dias seguintes ao episódio, uma pesquisa de opinião simulando o cenário eleitoral para a Presidência da República indicava Lula liderando a corrida eleitoral pelo cargo que ocupou entre 2003 e 2011. Esse fato, somado a proximidade da primeira votação do impeachment na Câmara dos Deputados, que ocorreria em 17 de abril, suscitou centenas de atividades em todo o país.

Comitês pela democracia em dezenas de universidades, divulgação de manifestos assinados por artistas, intelectuais, juristas e políticos, vários debates nas redes sociais elevaram a temperatura da política no país. Do ponto de ônibus ao botequim, passando pela padaria e a igreja. Em todos os lugares alguém falava sobre o assunto.

Na capital paulista, Gabriel se tornou figura corriqueira nas principais atividades. Com um traquejo de garoto travesso e comunicativo, adquirido na lida diária da venda de doces, se aproximava das pessoas com facilidade. Inquieto, como é característico de adolescentes da sua idade, circulava entre os vários grupos presentes nas atividades. Com um tempo, percebeu ali também uma oportunidade de aumentar seus dividendos. Passou a revender broches com frases que ouvia serem pronunciadas nas palavras de ordens repetidas pelos manifestantes, como “não vai ter golpe” e “fora golpistas”.

Não demorou para Gabriel ser chamado pelo próprio nome nas atividades políticas. Isso também se refletia em seu perfil na rede social “Facebook”. Hoje tem 2.677 amigos, sendo a maioria filiados ao PT, PCdoB e PSOL. Seu álbum de fotos tem várias em que ele aparece junto de figuras conhecidas, como Lula e Gleisi Hoffmann, seus preferidos. Mas também Dilma Rousseff, Jandira Feghali, Vanessa Grazziotin e Lindbergh Farias.

Os contatos não se limitam ao momento das fotos. Como vai às principais atividades e já é reconhecido nelas, tem contato com os ativistas via WhatsApp também. Gabriel integra vários grupos, onde se informa sobre fatos e opiniões dos acontecimentos da política. Durante a entrevista, por vezes inverteu o papel perguntando sobre a maior possibilidade da saída de Temer: via impeachment no Congresso Nacional ou cassação da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Aniversário com Lula

Lula e Gabriel celebram juntos.

“Nasci em 27 de outubro de 2000. É o mesmo dia em que Lula faz aniversário”, frisa. A coincidência da data o levou a comemorar seu último aniversário junto com o ex-presidente e seu maior ídolo. “Alguns militantes decidiram fazer uma surpresa para o Lula e foram até o Instituto (Lula). Eu fui junto. Passei o dia lá, esperando para dar os parabéns para ele. Quando acabou uma reunião em que ele estava com a bancada do PT em Brasília, o encontramos e pude cumprimentá-lo”, descreve.

O mais recente encontro entre eles ocorreu dia 31 de maio. Marcaram, inclusive, a próxima data em que vão se ver. No dia 10 de junho, durante a posse da direção estadual do diretório PT paulista, Lula combinou de receber sua filiação e anunciá-la publicamente.

Engana-se quem acha que o ato de se filiar é mero capricho do garoto. “Quero ser candidato a vereador em Carapicuíba, em 2020”. Quando perguntado se esse é o maior objetivo da sua vida, ele responde que sim. “Já pensei em estudar Direito também, mas a maior coisa que eu penso mesmo é ser candidato”.

As limitações materiais da sua família fizeram com que ele assumisse responsabilidade cedo. Mas isso também foi uma opção sua. Sua mãe trabalha como vendedora numa loja no endinheirado Shopping Iguatemi, em Pinheiros. Com a renda desse trabalho, ela arca com as despesas da família. Os irmãos que moram com que ele não trabalham. No bairro, divertem-se todos os dias na quadra de esportes. “No esporte sou meio coxinha”, ele diz abrindo um sorriso inocente. Pergunto se o esporte dele é ganhar dinheiro. “Quem não gosta, né?”, responde rindo novamente.

Com o dinheiro que ganha com as vendas de doces, costuma comprar roupas e ir ao cinema. Assiste a maioria dos lançamentos. Prefere as salas do shopping JK. Sua mãe, segundo ele, diz que não é preciso ajudar em casa. Em momentos de maior restrição, vai ao supermercado e compra alguns alimentos. “Mas só às vezes mesmo”, diz.

A desenvoltura que tem em conversar e fazer brincadeira com as pessoas não é a mesma diante de circunstâncias que animam muitos garotos de sua idade. “Você namora, Gabriel? Tem alguma gatinha?”, pergunto. O rosto muda de feição. Fica com uma expressão nitidamente envergonhada, faz alguns segundos de silêncio e responde sorrindo novamente, só que com a voz mais baixa: “Sou de Deus”.

Saímos dos bancos situados na parte externa da biblioteca Mário de Andrade, na rua São Luís, centro de São Paulo, onde fizemos a entrevista, em direção à estação república do metrô. Descemos as escadas e, no sentido contrário, uma mulher branca, maquiada, de cabelos pretos subia pela escada rolante. “Olha ela”, fala em voz alta. A moça olha assustada e Gabriel ri alto. A cena indica que suas tardes de trabalho estão repletas de descontrações como essa.

Momentos depois nos despedimos. Lá iria Gabriel, com a sua alegria juvenil e acanhada, mesclada ao encantamento com a política e o sentimento de que, ao participar dela, podemos mudar a vida das pessoas para melhor.

Publicado em junho de 2017 no Jornalistas Livres.