Em entrevista ao jornalista Leonardo Sakamoto, da UOL, o ator e diretor do filme Marighella afirma que a arte e o pensamento crítico foram os primeiros alvos do governo de Jair Bolsonaro. “O mais preocupante é que não entendem a cultura como um setor economicamente importante, que emprega um monte gente, que gera renda e imposto. É burrice. Isso passa pela ignorância de ver a cultura como máquina de propaganda.”

Para Wagner Moura, Bolsonaro não entende a cultura como um setor economicamente importante, que gera empregos. Morando em Los Angeles com a família e trabalhando em Hollywood, acredita que as dificuldades enfrentadas por seu filme não aconteceriam nos Estados Unidos. “Apesar de Trump causar muito estrago, ele não tem o poder de Bolsonaro. Há um jogo democrático que não existe no Brasil”, afirma.

Leia a entrevista:

Quando é que Marighella será lançado no Brasil?

Não sabemos. Seria no final de novembro do ano passado, mas, agora, não temos data.

E o que está impedindo?

Como grande empresa, a O2 não pode chegar e dizer que a Ancine censurou o filme. Mas eu posso. Sustento o que já disse. É uma censura diferente, mas é censura, que usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais o governo discorda. Não há uma ordem transparente por parte do governo para que isso aconteça, no entanto já vimos Bolsonaro publicamente dizer que a cultura precisa de um filtro. E esse filtro seria feito pela Ancine.

Não tenho a menor dúvida de que Marighella não estreou ainda por uma questão política.

O filme, como tantas outras produções artísticas, havia se beneficiado de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. Mas a Ancine negou pedidos da produção que possibilitariam o lançamento. A agência tinha o direito de negá-los, sua decisão não foi tecnicamente ilegal. Mas não havia razão alguma para isso, ou seja, essa negativa tem a ver com o contexto em que estamos vivendo.

A forma que o governo escolheu para censurar a cultura no Brasil foi aparelhar instituições, como a Ancine, uma vez que nosso cinema, nosso teatro, ainda são – infelizmente – dependentes de recursos públicos. Quando a Ancine é aparelhada pelo bolsonarismo, qualquer pedido com relação a um filme como o Marighella será negado.

E quais eram os pedidos?

Um pedido de redimensionamento de orçamento e outro ressarcimento de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual que a produtora usou para cobrir a extensão do orçamento. Uma das regras do edital para o qual o projeto foi selecionado é de que o Fundo Setorial do Audiovisual, que concedeu os recursos, pode apoiar também a distribuição em circuito comercial do filme. Para tanto, a produtora deve realizar uma proposta ao Fundo em até 90 dias antes do lançamento do filme nos cinemas. Como o prazo inviabilizaria a data de lançamento, marcada para novembro, foi feito um pedido à Ancine para antecipar a proposta – o que foi negado. Isso ocorreu no final de agosto de 2019.

Era um trâmite normal, comum a qualquer projeto cultural. Tanto esperávamos que ele fosse acatado pela Ancine que marcamos data da estreia, colocamos cartazes e trailers na rua. Para nós foi uma surpresa a negativa.

Há boatos de que a O2 estaria impedida de lançar Marighella porque deu um calote relativo a recursos de outro filme. Primeiro, não estou aqui para defender a O2, mas a produtora não deu calote em ninguém. Não existe nenhuma dívida financeira com relação à Ancine. O que aconteceu é que um documentário, “O Sentido da Vida”, ainda não ficou pronto. Qual a praxe? As produtoras pedem à agência uma prorrogação para entrega do documentário. Como a instituição está acéfala, com um vácuo interno, não houve resposta. Com isso, a empresa entrou com um mandado de segurança.

Mas o atraso na conclusão do documentário “O Sentido da Vida” ocorreu apenas em novembro de 2019, enquanto a negativa do pedido relativo ao Marighella veio em agosto. Ou seja, uma coisa não tem a ver com a outra.

E agora?

Creio que vamos bancar a possibilidade de abrir mão do fundo de complementação no valor de R$ 1,72 milhão que teríamos direito de receber para cobrir os custos – embora tenhamos esperança da Ancine honrar esse compromisso, uma vez que já havíamos sido contemplados pelo fundo. Até agora, o orçamento total do filme foi de R$ 10,13 milhões. O Fundo Setorial do Audiovisual já investiu R$ 3,2 milhões.

Você está procurando apoiadores para isso?

Tenho procurado bastante.

Não ganhei um tostão com o Marighella, nunca recebi um centavo por esse filme. Pelo contrário, sempre investi no filme, não fui remunerado como produtor, diretor ou roteirista.

As pessoas que veem o filme não acreditam que foi feito com a quantidade de dinheiro que a gente usou. Mesmo assim, sigo empenhado. Se eu tivesse esse recurso, eu botaria para ver o filme acontecer no Brasil.

Partindo dessa experiência pessoal, como você avalia a situação do audiovisual e da cultura do país no último ano?

Quebrados. Ideologicamente, a cultura não é algo que interesse a esse governo. Esperar que ele entenda o valor simbólico e a importância da cultura para o país seria pedir demais. Até porque uma das primeiras coisas que eles fizeram foi acabar com o Ministério da Cultura.

O mais preocupante é que não entendem a cultura como um setor economicamente importante, que emprega um monte gente, que gera renda e imposto. É burrice. Isso passa pela ignorância de ver a cultura como máquina de propaganda.

Essa gente da Secretaria de Cultura diz “vamos criar uma arte conservadora e de direita, não vai ter fomento para gente de esquerda” – o que é uma imbecilidade. A arte não deve se prestar a instrumento de propaganda, mas arte pode ser política, política no sentido amplo. E a cultura do país deve abraçar a diversidade do país, com todas as suas diferentes manifestações, inclusive as manifestações políticas.

Nós artistas fomos uma base grande de resistência à eleição de Bolsonaro e a grande maioria segue se opondo ao governo. Por isso, ele age com vingança, é um governo que se notabiliza por ser um governo vingativo. Mas quebrar um setor econômico importante por vingancinha não faz sentido. Porque não somos nós artistas apenas, é a pessoa que dirige o caminhão, a que faz a marcenaria da cenografia, quem cozinha para todo mundo, são uma série de ramos produtivos que estão envolvidos na indústria criativa. Muitos podem quebrar com isso.

O filme Marighella, portanto, entra nessa vingança?

Totalmente. Depois que a Ancine negou os pedidos feitos pela O2, o cancelamento da estreia foi comemorado pelos filhos de Bolsonaro nas redes sociais. [“A produtora do filme Marighella, dirigido por Wagner PIÇÓU Moura, a O2, pleiteou à Ancine a bagatela de R$ 1.000.000 para um suposto “ressarcimento de despesas”. Pedido negado! Noutros tempos o desfecho seria outro, certamente com prejuízo aos cofres públicos”, tuitou o vereador Carlos Bolsonaro no dia 29 de agosto do ano passado.]

Bolsonaro já gastou tempo para detonar o filme e a mim. Quando o presidente de um país se declara pessoalmente contra uma obra cultural específica e um setor específico, não dá para não dizer que não é perseguição política.

Cartaz do filme
Cartaz do filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura – Divulgação

Você está morando em Los Angeles, nos Estados Unidos, e trabalhando em Hollywood. Acredita que esse tipo de situação que denuncia aconteceria sob o governo Donald Trump?

Não. Sempre que converso com as pessoas daqui sobre a diferença entre Trump e Bolsonaro, o que eu digo é que a democracia norte-americana é estabelecida, com instituições mais fortes. Apesar de Trump causar muito estrago, ele não tem o poder de Bolsonaro. Há um jogo democrático que não existe no Brasil, até por nossa democracia ser mais jovem, com uma ditadura recente. Essa ingerência do Executivo não acontece como no nosso país.

Enquanto o filme não é lançado aqui, ele continua circulando em festivais?

Essa questão da não estreia no Brasil nos causa um prejuízo gigante. Nenhum país que adquiriu os direitos de exibir o filme, e foram muitos, pode lançá-lo antes do Brasil. Além do prejuízo que já tive, podemos ter um prejuízo ainda maior se eles cancelarem os contratos. Mas o filme tem sido recebido de forma muito calorosa. Circulou pelos maiores festivais do mundo, tendo sido recebido sempre com muito entusiasmo pela crítica – o Seu Jorge ganhou dois prêmios de melhor ator. E por onde o festival passa, as pessoas entenderam que a obra traz uma carga simbólica. Estão atentas ao que acontece no Brasil e sabem que ele não pode estrear ainda.

As discussões em torno de Marighella passam pelo que o filme é tecnicamente, mas também pelo que foi a ditadura militar no Brasil e pelo que é o Brasil hoje. Acho isso muito bom, porque termina cumprindo uma função social insuspeita para o momento em que resolvi fazer o filme anos atrás. Mas que me agrada muito. Com todo o sofrimento, todo o perrengue que pessoalmente tenho passado com o Marighella, eu fico feliz.

Em 2018, uma das suas preocupações era o ataque ao filme por conta do personagem retratado. Qual o balanço que você faz?

Se os ataques viessem da sociedade, isso seria parte do jogo democrático – desde que não houvesse violência ou interrupção de debates públicos. Protestos, reclamações, discussões na internet, tudo isso eu entendo como parte do jogo, parte do barulho que uma obra de arte deve fazer na sociedade. Mas você ser interditado por uma diretriz governamental é terrível.

Continuo afirmando sem nenhum medo: o fato de não termos estreado o filme é fruto de um contexto político no qual o governo se apropriou das agências de fomento à cultura – das quais somos dependentes, infelizmente, ainda no Brasil – e fez com que através da burocracia, os filmes malvistos por ele fossem censurados. O Ministério da Cidadania suspendeu um edital inteiro de televisão que contemplava obras LGBTTQ, a Caixa Cultural começou a pedir o posicionamento político de proponentes.

Marighela não é um caso isolado, a cultura está sob censura. Não estou apenas defendendo meu filme, estou aqui como um cidadão que está vendo o que está acontecendo no Brasil.

Você acompanhou a reação à nomeação do documentário “Democracia em Vertigem” (que trata do impeachment de Dilma Rousseff), de Petra Costa, ao Oscar?

Houve uma histeria agressiva da direita. Aliás no ano em que investiram na destruição do nosso cinema, “Bacurau” e “A Vida Invisível” ganharam prêmios em Cannes e, agora, “Democracia em Vertigem” foi indicado ao Oscar. Duvido que qualquer um desses filmes conseguisse financiamento através da Ancine hoje. E não é porque todos os três diretores têm denunciado internacionalmente a tragédia do governo Bolsonaro.

O problema do fascista com a arte é mais profundo. Tem menos a ver com o que um artista diz e mais a ver com a natureza da arte mesmo. A história comprova que a arte e o pensamento crítico são as primeiras vítimas desse tipo de governo.

Fonte: Uol