Leia o artigo de Marina Pita, coordenadora do Intervozes, Coletivo Brasil de Comunicação.

Combate às fake news: de boas intenções o inferno está cheio

De boas intenções o inferno está cheio, diz o ditado. Esse parece ser o caso da proposta de relatório do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), em relação ao Projeto de Lei nº 2630/2020, que circulou informalmente entre os parlamentares nesta semana. No afã de dar respostas rápidas e fáceis a um processo bastante complexo e que ganha cada vez mais peso no debate político nacional, a desinformação, o tiro pode sair pela culatra.

O relatório – apelidado de “PL Black Mirror”, em referência à série que aborda a tecnologia em futuros distópicos – trazia, por exemplo, a possibilidade de pontuação dos usuários de redes sociais. Esta pontuação definiria quem seria visto ou não. Se aprovada e colocada em prática, imagine a guerra virtual que tal regra poderia gerar, sem resolver nada em termos de disseminação de desinformação. Havia também, no texto do senador Coronel, a previsão de retirada de conteúdo da Internet a partir da mera formalização de processo judicial. Imagine o nível de censura que os poderosos, com suas bem pagas equipes de advogados, poderiam impor aos cidadãos, aos pequenos empresários e à mídia independente caso se sentissem ameaçados.

Além destas, há muitas outras propostas “bem intencionadas” e perigosas sendo cogitadas pelos senadores. Muito perigosas.

Queremos destacar duas delas, que não estão apenas no relatório do senador Ângelo Coronel, mas em propostas de emendas e, inclusive, em uma proposição de texto substitutivo do próprio autor do projeto de lei 2630/2020, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

Obrigação de identificação de usuário na Internet

De forma mais ou menos severa, os senadores querem criar obrigações para que todos os usuários de Internet sejam obrigados a se identificar aos provedores de aplicação, como Facebook e Twitter. No caso da proposta do senador Ângelo Coronel havia até a obrigação de comprovante de residência!

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) já estabelece a guarda de dados de acesso, por seis meses, pelos provedores de aplicações, incluindo as redes sociais, que permitam identificar o usuário. O Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão, entendeu que a prática do anonimato pode ser observada de modo relativo e absoluto. Relativo é o caso em que o anonimato se dá apenas parcialmente, como no caso do uso de pseudônimo em redes sociais. Há dados, os previstos no Marco Civil da Internet (MCI), que podem levar a identificação e esses devem bastar, sob o risco de tratarmos todos os cidadãos como suspeitos.

Os senadores argumentam que nem sempre os dados previstos de serem coletados pelo MCI identificam pessoas na Internet. Isso não vai mudar por pedido de CPF ou RG. Ainda haverá fraude. E os cidadãos de bem terão que lidar com as fraudes nas redes sociais realizadas em seu nome.

A obrigação de identificação dos usuários para criação de contas nos serviços da Internet pode, ainda, ter um resultado não intencional bastante problemático: a autocensura. As pessoas por trás de canais e perfis relevantes – como o Sleeping Giants Brasil e os Fiscais do Ibama e do Patrimônio – podem desistir de manter suas atividades de denúncia.

Vale lembrar que o acesso aos dados dos usuários não tem sido garantido de forma criteriosa, como se esperaria, o que eleva o nível de preocupação quanto à segurança dos agentes por trás de contas que produzem conteúdo não apenas legítimo, mas importante. Em ação de João Dória, quando então prefeito de São Paulo, que pedia a retirada de uma página do Facebook que o desagradava e os dados do criador, a Justiça entendeu que a página era legítima e deveria ficar no ar, mas determinou que a plataforma entregasse os dados do criador.

Rastreamento de mensagens em aplicativos de comunicação instantânea

Uma ideia que circula muito entre os parlamentares bem intencionados, e inclusive consta em proposta de substitutivo do autor do PL 2630/2020, é a necessidade de registro da cadeia de distribuição de uma mensagem em sistemas como o WhatsApp, que visa ter os dados de quais mensagens foram trocadas por quem, ainda que sem entrar no conteúdo da mensagem. É uma proposta perigosa.

A primeira pergunta a se fazer é: qual o objetivo de tornar lei o que ficou marcado como lema da Agência de Segurança Nacional (NSA), “colete tudo”? Alguns dizem que é preciso saber quem criou um conteúdo para poder punir, proporcionalmente ao dano. Observando os vídeos mais incríveis que chegam no WhatsApp, há que se considerar a não intencionalidade de viralização. Nissin Ourfali que o diga. Uma pessoa não tem controle da viralização. Ela ocorre, muitas vezes, de forma orgânica. E como responsabilizar essa pessoa que não tinha a intenção de ganhar corações e mentes?

Imagine que o risco de viralização levará a um uso cada vez mais restrito de aplicações de mensageria instantânea. Talvez acabe com o “melhor da Internet” e as piadas a portas fechadas. As pessoas que usam o WhatsApp para se organizar legitimamente para discutir política estarão ameaçadas?

A boa notícia é que não é o usuário comum, que compartilhou uma piada entre os amigos cuja distribuição ganhou dimensões imprevistas, que os parlamentares querem identificar e punir, mas a desinformação orquestrada e maliciosa. Para isso, vale acompanhar o desenrolar de ações de investigação. A investigação e o sistema de Justiça não podem ser descartados como saída mais equilibrada para encontrar e punir os que trabalham de forma orquestrada para disseminar desinformação, calúnia, injúria e discurso de ódio por meio de aplicações conectadas. A investigação ainda é a melhor opção e não exige a coleta massiva e desproporcional, que trata a todos como potencialmente culpados. A regra da ordem judicial, para que se entre na seara do acesso a informações relativas a troca de conteúdos por usuários das comunicações, ainda que no caso do rastreamento de dados de trocas de mensagens no WhatsApp e semelhantes sejam os dados de compartilhamento do conteúdo e não o conteúdo em si (imagem, vídeo, texto), ainda deveria valer.

A lei da interceptação telefônica funciona assim: apenas após ordem judicial é possível começar a “ouvir” o que os cidadãos estão falando. No limite, o rastreamento pode gerar uma autocensura, a migração para aplicações não adequadas a possível regulação e pouco efeito nas fábricas de fake news.

Então, o que podemos fazer?

Além de problemas, o debate em torno do PL 2630/2020 trouxe também oportunidades: a de discutir a transparência dos provedores de aplicações quanto a suas políticas quanto à moderação de conteúdo e como essas se dão na prática.

O modelo de não responsabilização objetiva dos intermediários por conteúdo gerado por terceiros, estabelecido no artigo 19 do Marco Civil da Internet, é equilibrado pois fortalece a liberdade de expressão e reduz os danos de impor a agentes privados o dever de decidir o que pode ou não ser dito em redes sociais – essas cada vez mais importantes para a construção do debate público.

Este modelo também permite que as empresas façam moderação de conteúdo no limite de seu melhor esforço para conter conteúdo ilegal e danoso, sem a pressão de que por não retirarem um conteúdo sofram pesadas sanções. Mas, muito se diz sobre o quanto este modelo teria deixado essas empresas “preguiçosas” e aberto espaço para uma moderação apenas a partir de interesses econômicos, desconsiderando os padrões internacionais de direitos humanos.

É possível, de fato, que essas empresas tenham se acomodado. Não tenham investido suficientemente para localizar e impedir danos – e a lógica do melhor esforço pode ter sido prejudicada. Mas é difícil afirmar algo assim e, mais, entender as necessidades de correção de rumo sem que as empresas ofereçam mais dados sobre as políticas de moderação de conteúdo e contas e informem periodicamente tanto o quanto foram instadas a agir quanto as ações tomadas, em quanto tempo e com qual índice de erro.

O debate sobre moderação de conteúdo só pode alcançar um novo patamar se as empresas que dão suporte ao debate público estiverem comprometidas a oferecer mais dados e informações sobre o que vêm fazendo. Certamente a liberdade de expressão não é um direito ilimitado. Está, sim, sujeito a restrições para que outros direitos sejam garantidos. Mas, antes de tudo, é preciso ter mais informações para que uma regulação que vise conter a desinformação não cave mais um pouco o buraco das lacunas democráticas existentes no país.

*Marina Pita é jornalista e coordenadora executiva do Intervozes

Publicado originalmente no Congresso em Foco.