Biógrafo de Lula, Fernando Morais relembra episódio ocorrido há 40 anos, que revela sensibilidade política de Lula, chamado recentemente de “tosco” por FHC

Dois dias atrás o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao jornalista Tales Faria, do UOL, declarou que conhecia Lula há muito tempo. “Eu conheci o Lula tosco”, pontificou. O jornalista Fernando Morais, editor do Nocaute, desenterrou um episódio ocorrido quarenta anos atrás, em que a sensibilidade política do metalúrgico “tosco” prevaleceu sobre a análise de conjuntura do sociólogo. Leia a seguir:

Memórias de uma noite de março de 1979, em São Bernardo do Campo

A tensão era visível no rosto das centenas de trabalhadores que ocupavam o sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, naquela abafada e calorenta noite de sexta-feira, dia 23 de março de 1979. A greve geral entrava em seu décimo dia com duzentos mil trabalhadores parados na região do ABC e nas cidades de São José dos Campos e Santa Bárbara d’Oeste, no interior do estado.

A pauta de reivindicações dos metalúrgicos era extensa, com mais de vinte itens, mas o centro da discórdia entre patrões e empregados era o reajuste salarial de 78,1% – a soma do índice oficial de 44% mais os 34,1% de reposição das perdas dos anos 72 e 73 – e a instituição do delegado sindical.

O banqueiro Mário Henrique Simonsen, ministro do Planejamento, advogava uma solução radical: incluir os metalúrgicos entre as categorias proibidas de fazer greve por “ameaça à segurança nacional”. Preocupada com a paralisação, a Federação das Indústrias acenava com um aumento de 62% e um piso salarial de Cr$ 3 mil [o equivalente a R$ 2 mil de 2020], proposta rejeitada por aclamação em uma assembleia que reunira dezenas de milhares de trabalhadores no estádio de Vila Euclides, em São Bernardo.

A Justiça do Trabalho esticara ainda mais a corda ao decretar a ilegalidade da greve, o que deixava os metalúrgicos à mercê da Tropa de Choque da Polícia Militar, colocada a serviço dos patrões pelo governador nomeado Paulo Maluf. A proposta da FIESP, a ameaça de Simonsen e a decretação de ilegalidade não intimidaram a peãozada, que em sucessivas e massivas assembleias insistia em manter a greve.

Comandado pelo coronel Dauterdimas Rigonatto, um oficial baixinho, de tórax bovino e olhos azuis, o Batalhão de Choque agia com violência e brutalidade sobretudo nas madrugadas, quando os piquetes nas portas de fábricas eram reprimidos por bombas de gás lacrimogêneo e golpes de cassetetes dos soldados da Cavalaria. Para tentar inibir, ou pelo menos testemunhar e denunciar a repressão, um pequeno grupo de deputados estaduais do MDB se revezava em jornadas que viravam as noites no ABC. Os parlamentares federais do chamado “grupo autêntico” repercutiam na tribuna do Congresso o cerco montado contra os grevistas pela aliança entre os patrões, o governo do Estado e a Justiça do Trabalho.

Para agravar mais o impasse, na manhã daquela sexta-feira a FIESP divulgara um levantamento informando que a greve já provocara um prejuízo para a indústria automobilística – montadoras e fabricantes de autopeças – de CR$ 32 bilhões [cerca de R$ 20 bilhões de 2020]. Só a Volkswagen do Brasil, dizia o informe, deixara de exportar, em decorrência da greve, milhares de automóveis Passat para o Iraque, a Líbia e a Arábia Saudita. A paralisação, afirmavam os industriais, já fizera um rombo nos cofres públicos de CR$ 3,4 milhões de ICM e IPI não recolhidos.

Tudo indicava que o governo estava na iminência de disparar o tiro de misericórdia: a intervenção federal no sindicato dos metalúrgicos, seguida do afastamento de Lula, presidente da entidade, e de toda a diretoria.

Quando a Assembleia Legislativa de São Paulo encerrou a sessão, no final da tarde, fomos para o sindicato, de terno e gravata, como fazíamos quase todos os dias, os deputados Geraldo Siqueira, Antonio Rezk e eu, os três filiados ao MDB. Com a reorganização partidária, que ocorreria meses depois, só eu permaneceria no partido-frente. “Geraldinho” se filiaria ao recém-criado Partido dos Trabalhadores e Rezk iria para o Partido Comunista Brasileiro, legalizado após mais de três décadas de clandestinidade.

Com o passar das horas a multidão que ocupava o sindicato foi rareando, com alguns grupos indo descansar e outros se organizando em piquetes nas portas das fábricas. Os três deputados e mais meia dúzia de sindicalistas fomos para a sala da presidência para nos juntarmos a Lula. Regada a goles de cachaça com cambuci – uma espécie de figo azedo, abundante nas árvores de rua do ABC – a conversa entrou pela noite. Lula estava convencido de que a intervenção era uma questão de horas.

Sem gravata, de paletó pied de poule branco salpicado de pintas pretas, calça bege e mocassins marrons, Fernando Henrique Cardoso apareceu por volta das nove da noite, quando a fome começava a bater em nossos estômagos. Sociólogo aposentado compulsoriamente da USP pelo golpe militar, ele já circulara pelo ABC um ano antes, quando pedira ajuda a Lula para sua candidatura ao Senado pelo MDB. Apesar do apoio do líder metalúrgico – Lula chegou a destacar um dirigente de sua confiança, Devanir Ribeiro, então secretário-geral do sindicato, para coordenar a campanha dele no ABC – Cardoso acabou derrotado por Franco Montoro, de quem se tornara primeiro suplente no Senado.

Quando Fernando Henrique chegou ao sindicado, naquela noite, nós já nos preparávamos para jantar. Na minha memória, o lugar escolhido teria sido um dos muitos restaurantes da “rota do frango com polenta” do bairro Demarchi, em São Bernardo do Campo. Lula garante que não, que comemos uma bisteca de boi nas proximidades do sindicato. Outra imprecisão: já li em livros e reportagens que eu teria sido a única testemunha daquele encontro entre Lula e Fernando Henrique. Não foi assim. Além de nós três, jantaram e ficaram até o fim os deputados Geraldo Siqueira e Antonio Rezk.

O local e o repasto da noite, de qualquer forma, são irrelevantes. O tempo do jantar foi consumido pela discussão a respeito do que estava para acontecer. Lula e os três deputados acreditávamos que o governo decidira endurecer o jogo e que a intervenção federal estava a caminho – e que deveríamos estar preparados para isso. Fernando Henrique discordava de nossa avaliação. Ele acreditava que o governo recém-empossado (o general João Batista Figueiredo assumira a Presidência da República havia menos de duas semanas) era o avalista da abertura “lenta, gradual e segura” proposta pelo antecessor, Ernesto Geisel, e que a intervenção significaria um rompimento com a engenharia política montada por Geisel e seu principal conselheiro, o general Golbery do Couto e Silva.

O termômetro usado por Lula para prever o pior não decorria de uma elaboração acadêmica, mas de seu instinto político e da vivência pessoal da crise nas semanas anteriores. Além de liderar as assembleias de Vila Euclides, ele vinha mantendo contatos regulares com os empresários do chamado Grupo 14 da FIESP, composto por duas dezenas de dirigentes de sindicatos patronais da indústria automobilística, para tentar convencê-los a reabrir negociações e a ceder às reivindicações dos trabalhadores. Lula acreditava que a aliança patrões-governo-justiça trabalhista estava disposta a ir às últimas consequências não apenas para acabar com a greve, mas para quebrar a espinha do movimento sindical do ABC que se atrevera a peitar a ditadura.

Fernando Henrique retrucou que, além dos argumentos que expusera, o perfil do novo ministro do Trabalho, Murilo Macedo, um banqueiro mineiro, era o de um conciliador, não de um interventor atrabiliário. FHC não sabia que, três dias antes, Lula se reunira durante seis horas seguidas com Macedo, na casa do ministro, acompanhado de dois sindicalistas e dois advogados do sindicato – e saíra de lá, no meio da madrugada, convencido de que o governo planejava a intervenção para breve. Como o próprio Lula se lembraria, anos depois, Fernando Henrique chegara a invocar sua familiaridade com o mundo militar – ele é bisneto, neto, sobrinho e filho de oficiais superiores do Exército – para sustentar sua argumentação:

– No restaurante o Fernando Henrique fez uma análise de conjuntura mostrando que não havia clima para uma intervenção no sindicato. Para ele, era um absurdo imaginar que o governo ia intervir. Lembrou que o pai dele era general e que, ao contrário de nós, ele conhecia como é que essas coisas funcionavam entre os militares.

O jantar e a conversa chegaram ao fim sem que ninguém convencesse ninguém. Fernando Henrique pegou o carro e foi embora para São Paulo. Céticos com relação às conclusões dele, Lula e nós três voltamos para o sindicato. Lula improvisou um travesseiro e tirou um cochilo no chão de sua sala. Às três e meia da madrugada foi acordado pelo alvoroço que tomava conta do prédio e pelo ruído que vinha da rua. Correu à janela e viu trezentos soldados da Tropa de Choque, a Cavalaria e um pelotão com cães pastores cercando o sindicato. Quando o sábado amanheceu a polícia abriu caminho para a entrada do delegado do Trabalho Guaracy Horta, nomeado interventor por decreto assinado por Murilo Macedo à meia-noite da sexta-feira, quando ainda jantávamos com Fernando Henrique. Ao longo do sábado, 170 grevistas foram presos. A sensibilidade do metalúrgico “tosco” prevalecera sobre a elaborada análise conjuntural do sociólogo.

Publicado originalmente no Nocaute.